Revista Blumenau em Cadernos

20160422_110945-1

A edição de novembro/dezembro de 2015 da Revista Blumenau em Cadernos (ISSN 0006-5218) do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina foi totalmente dedicada aos 140 anos de imigração tirolesa em Santa Catarina e contou com artigos e estudos do jornalista Renzo Maria Grosselli (“Os tiroleses italianos na Colônia Blumenau”), da Profa. Ornella Pezzini (“O Tirol de ontem, o Trentino de hoje”), Norberto Dallabrida (“Imigração e colonização de trentinos e italianos na Colônia Blumenau”) e de Nelson Dellagiustina (“Usos e costumes de nossos antepassados” e “Crônicas natalinas”). O blog Tiroleses no Brasil reproduz aqui o artigo “Aspectos identitários da imigração tirolesa no Brasil (1859 – 1938)” de autoria do Prof. Dr. Everton Altmayer, estudo que foi publicado na mesma edição.


 Aspectos identitários da imigração tirolesa no Brasil (1859 – 1938)

Everton Altmayer

     No primeiro semestre de 2015, o Arquivo Público do Estado do Espírito Santo publicou em seu site um artigo com título bastante interessante, afirmando que a “descoberta” de um documento histórico “referenda Santa Teresa como a primeira cidade fundada por italianos no Brasil”. Trata-se de um pedido de ressarcimento datado de 28 de outubro de 1874, escrito em português, por solicitação do colono Francesco Merlo (chegado ao Espírito Santo em 17 de fevereiro de 1874) e que contém a seguinte informação: “Francesco Merlo, colono italiano estabelecido na Colônia de Santa Leopoldina, no Districto de Timbuhy à margem da estrada de Santa Thereza”.

Arquivo Publico ES

     No documento endereçado à presidência da província capixaba, solicita-se a restituição dos gastos feitos com a viagem do colono “italiano” desde a Europa até a colônia Nova Trento, fundada em 1874 por Pietro Tabacchi. O valor solicitado era o equivalente a 122 florins, não reembolsado pelo contratante após a viagem feita a bordo do navio La Sofia, em 1874, no qual Merlo chegou ao Brasil juntamente com sua esposa Dalila Cappelletti e mais quatro filhos. O imigrante “italiano” era natural de Trento e sua esposa de Covelo, ambas cidades do Tirol Italiano (ou Tirol Meridional). No final do século XIX, todo o Tirol era uma importante região do Império Austríaco, unido ao Reino da Hungria, e não integrava o Reino da Itália (isso ocorreria somente após a Primeira Guerra Mundial). Haja vista que o imigrante entrou no Brasil com passaporte austríaco e que o valor em florins correspondia ao da moeda austríaca (enquanto a lira era a moeda italiana), é preciso fazer algumas perguntas: como o documento de um colono austríaco se torna “comprovação” da imigração italiana? Por que Francesco Merlo é chamado, no documento, de “colono italiano”?

     As respostas se encontram nos contextos histórico, social e linguístico da Europa do século XIX. É necessário, portanto, conhecer algumas características da região conhecida como Tirol, assim como do extinto Império Austro-húngaro, termo em certos aspectos errôneo porque pressupõe um império misto formado por duas nações, o que, de fato, jamais foi: tratou-se de um acordo político que uniu duas monarquias: o Império Austríaco e Reino da Hungria. O uso do termo pressupõe também a hierarquia entre as coroas na monarquia dual, mas se justifica principalmente no fato de terem existido instituições mistas como partes do exército e da marinha que foram, realmente, austro-húngaras. Assim, tratou-se de um compromisso (al. Ausgleich) firmado em 1867, no qual o imperador austríaco era também rei da Hungria, embora o território fosse dividido entre Cisletânia (terras historicamente austríacas ou ligadas à Casa de Habsburgo) e Transletânia (Reino da Hungria e terras ligadas à coroa húngara) e fosse necessário renovar o acordo a cada dez anos. Cada nação possuía seu parlamento com suas leis, bem como suas bandeiras e, a título de curiosidade, participavam separadamente durante os jogos olímpicos.

     A grande característica da Áustria-Hungria era a pluralidade que, em muitos aspectos, justificava sua própria existência, porque unia diferentes etnias, culturas e religiões. O último censo realizado em 1910 demonstrava sua complexidade social: somente na parte ocidental do império, onde viviam 27.936.872 habitantes, 35,58% eram alemães, 23,02% tchecos, 17,77% poloneses, 12,58% rutenos, 4,48% eslovenos, 2,80% servo-croatas, 2,75% italianos e 0,98% romenos. Não havia unidade étnica na Áustria imperial, nem mesmo qualquer unidade linguística e nacional. Embora os Habsburgo fossem católicos, não havia unidade confessional no império que agregava cristãos católicos, ortodoxos e protestantes, assim como judeus e muçulmanos. Doze eram as línguas oficiais, entre elas o alemão, o italiano, o tcheco, o esloveno, o polonês, o ucraniano e o romeno.

     Na “pluralidade austríaca” se explica, por exemplo, o porquê de, findado o Sacro Império Romano-Germânico, a Áustria jamais ter aceitado uma união territorial e política com os “estados alemães” que formaram (não sem guerras) o Império Alemão guiado pelo militarista Reino da Prússia. A Habsburgo era de antiga estirpe, originária da Suíça, que já na Idade Média governava o pequeno ducado que se tornaria um dos maiores impérios europeus, o Império Austríaco (1806 – 1864). O passado “misto” – profundamente enraizado nas culturas céltica, latina, germânica e eslava – não permitia ao imperador austríaco governar para “um povo” como queriam fazer os prussianos com os germânicos já reunidos no Sacro Império.

O Império Austro-Húngaro em 1918. Em vermelho, as terras do Império Austríaco; em Amarelo, as terras do Reino da Hungria.
O Império Austro-Húngaro. Em vermelho, as terras do Império Austríaco; em Amarelo, as terras do Reino da Hungria.

 

     Em 1806, a Áustria, então um arquiducado, foi elevada a Império e o imperador Francisco I de Habsburgo, pai de Dona Leopoldina (primeira imperatriz do Brasil), era perfeitamente ciente “pluralidade” de suas terras. No entanto, a influência da Revolução Francesa ecoava por toda a Europa. No decorrer do século XIX, o vasto império governado pelo famoso casal Franz Joseph e Elisabeth (mundialmente conhecida como Sissi) sofreu profundas mudanças sociais com o surgimento dos nacionalismos, “filhos” da política napoleônica e da união dos conceitos “nação”, “língua” e “etnia”. Tal visão política, muito mais apegada à raça que à ratio, foi também responsável pelo fim do Império da Áustria-Hungria (1867 – 1918), pelo surgimento de governos totalitários e por duas terríveis guerras mundiais. Mas não apenas. Ainda hoje, o senso comum costuma mesclar os conceitos de nação, língua e etnia, propagando estereótipos bastante nocivos às realidades “plurais” de países ou regiões de fronteira.

     Nesse contexto se insere a realidade social do território tirolês, porque o que hoje se conhece por Tirol, um dos nove estados da atual República da Áustria, não corresponde à região histórica que inclui, além da porção setentrional austríaca, uma região autônoma formada por duas províncias italianas (Trento e Bolzano), anexadas ao então Reino da Itália após o final da Primeira Guerra Mundial.

tirolheute
A região do Tirol, atualmente dividida entre Áustria e Itália.

     Tirol histórico, portanto. Região que agrega todo o território montanhoso que vai desde o grupo Kaisergebirge, na fronteira da Alemanha com a Áustria, até o Lago di Garda (al. Gardasee, Gartensee), na fronteira com as regiões italianas do Vêneto e da Lombardia. Esse território conhecido desde a Alta Idade Média como Tirol (inicialmente Tiral, depois Tiralli, Tirâl e Tyrol/Tirol) permaneceu unido à Casa de Habsburgo de 1363 a 1918. Localizado nos Alpes, é uma importante região de passagem, ligando a península itálica às terras setentrionais e, já na Antiguidade, encontraram-se ali as culturas céltica, rética e latina, às quais se acrescenta a cultura germânica com as migrações que culminaram com o fim do Império Romano. A Idade Média foi responsável pela “mistura” desses grupos e das diferentes influências étnicas e linguísticas, formando um mosaico bastante rico de falares e tradições que, apesar das diferentes matizes, apresentam muitas semelhanças nos vales da região tirolesa.

     A história do Tirol – e da imigração de tiroleses no Brasil – é inseparável do contexto étnico e linguístico que, como afirmado, caracterizava a Áustria de outrora. Até 1918, um austríaco não falava necessariamente o alemão, mas poderia ser um falante de italiano, de polonês ou de esloveno. Obviamente, tal realidade plural também caracterizou a emigração de austríacos e nisso se explica como um colono “italiano”, ou melhor, um tirolês de língua italiana (atualmente chamado trentino), era sem sombra de dúvidas um imigrante austríaco, embora pertencesse ao grupo linguístico italiano do Império da Áustria-Hungria.

reisepass
Passaporte de imigrante austríaco oriundo da Valsugana, área de língua italiana do Tirol, estabelecido em 1874 na Colônia Nova Trento, Espírito Santo

     Embora seja comum identificar o “tirolês” como um indivíduo de cultura germânica, isso não condiz com a realidade do Tirol, região historicamente habitada por três grupos linguísticos principais: falantes do alemão, do italiano e do ladino dolomítico (língua aparentada ao romanche suíço). Para termos uma ideia mais clara, bastaria pensar na realidade da atual Suíça: um pequeno país localizado nos Alpes, com quatro idiomas oficiais (francês, alemão, italiano e romanche), mas não se discute que um suíço francês seja “menos suíço” de um compatriota de língua materna alemã.

     Além desses três idiomas, um grande número de falares que se dividem em dialetos; seria errôneo dizer que os falares romances do Tirol sejam dialetos do italiano, assim como o bávaro não é um dialeto do alemão. Trata-se de sistemas linguísticos com ou sem tradição escrita e que não possuem o status de línguas oficiais. Vale lembrar que muito antes de as nações europeias começarem a discutir em seus parlamentos sobre a obrigatoriedade do ensino básico, as terras governadas pelos duques da Áustria no Sacro Império já haviam instituído a escola básica obrigatória, de modo que a taxa de analfabetismo era muito inferir se comparada a outros reinos, como o da Itália, que ultrapassava o número de 50% de analfabetos no século XIX. No Tirol, dependendo da região, ensinava-se na escola o italiano ou o alemão.

     Como afirmado, esses aspectos fazem parte da realidade cultural e social dos imigrantes tiroleses e devem ser levados em consideração quando nos propomos a estudar a história da imigração. Na realidade, é praticamente impossível desvinculá-los do contexto histórico.

Atualmente, a região do Tirol se divide em 5 “partes”:

 tirolgeteilt Na Áustria:

1 e 2. Estado do Tirol

Na Itália:

3. Província Autônoma de Bolzano

4. Província Autônoma de Trento

5. Ampezzo na província de Beluno (Vêneto)

     A partir de 1860, a Áustria apresentou um considerável crescimento econômico, mas a união das coroas austríaca e húngara, as guerras e a perda do Lombardo-Vêneto para a Itália em 1866 enfraqueceriam a economia crescente, de modo que já em 1870 se viam os resultados da pobreza no campo. Entre 1868 e 1873, fundou-se uma centena de bancos interessados exclusivamente na especulação financeira e isso gerou um efeito catastrófico que se agravou após o Krach da bolsa de Viena, ocorrido em 1873 (conhecido como “sexta-feira negra”), resultando em falências, liquidações de bancos e companhias de seguros, fechamento de indústrias e de sociedades ferroviárias.

     A região do Tirol, essencialmente agrícola, sentiu profundamente os efeitos da guerra de 1866. O enfraquecimento político do império com a perda da Lombardia (1859) e do Vêneto (1866) para o Reino da Itália foram decisivos no processo de emigração. Vale lembrar que as tropas italianas e de Garibaldi procuraram anexar a porção italófona do Tirol ao Reino da Itália, sem sucesso. Sabe-se hoje que a interrupção durante a batalha de Bezzeca, ocorrida em julho de 1866 no vale tirolês de Ledro (al. Ledertal) não foi um gesto de obediência do general Giuseppe Garibaldi ao rei italiano Vittorio Emanuele, mas tratou-se realmente de uma fuga necessária após as baixas italianas contra as tropas austríacas e de voluntários da região, tiroleses de língua italiana arregimentados nas companhias de atiradores voluntários (sìzzeri, al. Schützen) que quase capturaram Garibaldi. Uma canção popular da época demonstra o sentimento patriótico tirolês:

Co’ la pel de Garibaldi
noi farem tanti tamburi,
Tirolesi ste sicuri:
Garibaldi no ven più!

Com a pele de Garibaldi
nós faremos tantos tambores,
Tiroleses estejais seguros:
Garibaldi não virá mais!

     Praticamente dez anos após a guerra de 1866, que anexou o Vêneto ao Reino da Itália, iniciou-se a grande imigração de vênetos para o Brasil. E também de tiroleses de língua italiana, pois os produtores da parte meridional do Tirol não enxergavam nenhum horizonte comercial após o embargo italiano contra os produtos tiroleses, enquanto os produtores do Tirol alemão não permitiam que seus produtos perdessem mercado. No início do século XIX, os camponeses representavam 90% da população no Tirol Italiano e a cidade de Trento não contava com mais de doze mil habitantes. O processo imigratório modificou totalmente a paisagem humana da região, pois se tratou de um verdadeiro êxodo a partir de 1874.

     Com Dona Leopoldina, primeira imperatriz do Brasil, chegaram cerca de duzentos soldados austríacos. No entanto, o que se pode chamar de imigração austríaca teve início no Espírito Santo, com tiroleses de língua alemã chegados em 1859. A partir de então, boemos de língua alemã se instalaram juntamente com alemães (cuja primeira imigração se registra em 1824) no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A partir de 1870, a imigração de austríacos para o Brasil tomou proporções relevantes, alcançando seus mais altos índices. Sem dúvida, os tiroleses de língua italiana (trentinos) representaram um dos maiores contingentes desses imigrantes, assim como gorizianos, friulanos, poloneses da Galícia e boemos.

     Fossem de língua alemã que italiana, os tiroleses passaram a integrar a sociedade brasileira com sua bagagem cultural. Dois personagens “pioneiros” merecem destaque: o frade Wendelino de Innsbruck, o primeiro tirolês de língua alemã de que se tem notícia no Espírito Santo, e o ex-industrial Pietro Tabacchi, tirolês de língua italiana que, após a falência de seus negócios em Trento, preferiu “fugir” dos credores trentinos e seguir para o Brasil, encontrando aqui uma atividade lucrativa na extração de madeira desde 1851.

     Os tiroleses de língua alemã, chegados em 1859, fundaram um núcleo batizado com o nome de Tirol, pertencente à antiga Colônia Santa Leopoldina, então Província do Espírito Santo. Wagemann (1949, p. 24) apresenta o número de 82 tiroleses que se estabeleceram na Colônia Santa Leopoldina juntamente com demais colonos alemães, suíços e holandeses. Em se tratando de tiroleses de língua alemã, além de algumas informações mantidas na memória de poucas famílias de descendentes, supõe-se que fossem esses tiroleses, em sua maioria, da porção setentrional do Tirol (al. Nordtirol). Sabe-se que, entre 1861 e 1868, 29 tiroleses se estabeleceram na colônia catarinense fundada por Dr. Herrmann Bruno Otto Blumenau (1819 – 1899), mas não há dados que confirmem serem eles de língua alemã ou italiana; sete anos após a colônia receberia um grande número de tiroleses de língua italiana.

     Ao que tudo indica, o ano de 1874 marca a chegada dos primeiros tiroleses de língua italiana chegou ao Brasil, a bordo do navio La Sofia. Trazidos por Pietro Tabacchi, trezentos e oitenta e oito imigrantes tiroleses foram instalados na fazenda Nova Trento, (Colônia Timbuhy). A chegada desses imigrantes tiroleses ao Espírito Santo tem sido comumente instrumentalizada como prova do “início da imigração italiana no Brasil” pelo simples fato desses imigrantes aqui chegados com passaporte austríaco falarem o idioma italiano. Todavia, a primeira experiência com imigrantes italianos no Brasil ocorreu em 1836, com a fundação da Colônia Nova Itália em São João Batista, no estado de Santa Catarina, por 180 imigrantes vindos da Ligúria. A colônia não prosperou devido às difíceis condições da época e por conta de um ataque feroz de índios que habitavam a região. Vale lembrar que, naquele tempo, um Reino da Itália não existia e os domínios da Casa de Savoia compunham o Reino da Sardenha.

      Os colonos tiroleses trazidos por Tabacchi recebiam elogios do governo em Vitória que publicou uma nota afirmando que “a colonização dos tiroleses deu ótimos resultados, homens trabalhadores e de boa moral, cuidam de seus serviços com interesse, e constantemente revelam-se amantes de suas famílias e interessados no bem-estar de cada um de seus membros”. Assim como com seus antigos credores em Trento, Tabacchi encontrou dificuldades financeiras com seus compatriotas estabelecidos no Brasil que, descontentes com as propostas trabalhistas do chefe da colônia, rebelaram-se e procuraram ajuda do governo local para que fossem transferidos para Santa Leopoldina. Tais reivindicações contaram, inclusive, com o apoio do consulado austríaco do Rio de Janeiro. Diante do ocorrido, o responsável pela colônia fez circular um aviso em Vitória no dia 06 de maio de 1874 no qual se lia:

“Pietro Tabacchi, tendo contratado diversos colonos do Tirol Italiano para a sua fazenda, situada no Município de Santa Cruz, avisa que procederá com todo o rigor, em conformidade com a lei de 11 de outubro de 1837, contra quem engajar ou admitir tais colonos em qualquer trabalho privado. E, para que ninguém possa alegar ignorância destes fatos, publica este aviso na imprensa” (Vitória, 06/05/1874).

     Após a saída das terras de Tabacchi, alguns tiroleses se estabeleceram em Santa Leopoldina; outros reivindicaram novos lotes junto às autoridades de Vitória e, por isso, foram transferidos para a Colônia Rio Novo. A presidência da então província do Espírito Santo não atendeu a todos os pedidos embora enviasse mantimentos. As ameaças recíprocas e as tensões criadas se tornaram um verdadeiro caso de polícia e provavelmente refletissem os vários anseios da época na busca por melhores condições de vida.

     A data de 1874 é ainda incerta para indicar o início da imigração “trentina”, porque alguns estudos de Mario Gardelin junto ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul indicam o mês de outubro de 1873 como sendo o inicial da chegada dos primeiros “italianos” ao estado, mas, ao que tudo indica, eram tiroleses. Estes não representaram mais do que 7% dos imigrantes falantes do italiano naquele estado, mas foram os pioneiros nas colônias que se tornariam as cidades de Bento Gonçalves, Caxias do Sul e Flores da Cunha, chegando à região principalmente a partir de 1875. Antes dos tiroleses, já em 1869, imigrantes austríacos de língua alemã, saídos principalmente da Boêmia, haviam se instalado no Rio Grande do Sul. O jesuíta Teodoro Amstad registrou a comunidade de Novo Tirol, fundada provavelmente em 1873 no vale do Rio Caí, onde atualmente se encontra a Linha Temerária, pertencente a Nova Petrópolis, com acesso através da estrada chamada Tirol. Muito provavelmente, a comunidade foi fundada por tiroleses que falavam o alemão e, assim, podiam se comunicar com a maioria dos demais colonos da região, vindos principalmente dos estados germânicos que, no decorrer do século XIX, comporiam o Reino Alemão. Registram-se ali dois sobrenome típicos do Tirol Italiano: Campani e Sebastiani.

    Certo é que, a partir da metade do século XIX, a situação econômica era calamitosa na porção meridional do Tirol, ou seja, no Tirol Italiano. A imigração era uma fuga pela sobrevivência. Milhares de camponeses miseráveis não conseguiam consumir diariamente alimentos básicos como leite, carne, ovos e massas. A maioria das refeições semanais era feita praticamente a base de farinha de milho cozida ou torrada (polenta, bro brusà), chucrute (repolho curtido), alguns legumes e, porventura, alguma carne de caça (geralmente pequenas aves). Era comum a existência do trabalhadores que aceitavam como pagamento apenas a refeição ou até mesmo uma garrafa de destilado (al. Schnaps, trent. sgnapa), conhecidos no Tirol alemão como Korner e no Tirol Italiano como lingera. Um canto popular outrora bastante difuso no Tirol Italiano e no Vêneto (ainda cantado no Brasil) retrata os anseios da época:

Votu venir Giulieta?
Votu venir con me?
Votu venir en Mèrica
a travaliar con me?
Mi si che vegniria
se fus da chi a Milan,
ma per ‘ndar en Mèrica
l’è massa via lontan!
Mi parto col vapore
se no se mòre de fam!
Vago lontan en Mèrica
endo gh’è pan e salam!
Queres vir Julieta?
Queres vir comigo?
Queres vir para a América
para trabalhar comigo?Eu bem que iria
se fosse daqui a Milão,
mas para ir à América
é muito longe!Eu parto com o navio,
senão se morre de fome!
Vou para longe, para a América
onde há pão e salame.

     A emigração não era apenas uma fuga da situação de pobreza, mas também uma alternativa à exploração de famílias camponesas. Fuga de um sistema agrário arcaico, dependente do modelo tradicional de divisão de terras que privilegiava o irmão mais velho (único herdeiro), mas também fuga do poderio dos “Senhores do Tirol”, isto é, das famílias de antigo prestígio regional, proprietárias das melhores terras e “donos” da economia nos vales. Bonatti (1974, p. 28) identifica alguns desses siori (“senhores”) na região entre Trento e Matarello, entre eles os condes Martini, Salazin e Schizzo de Noris (deputado em Viena), os barões Trentini e Merzi, a família dos condes Thun Hoestein e os latifundiários Pedrotti e Prandi. Além deles, os latifúndios do bispado tridentino, chamados mensa vescovile.

     Outro canto de emigração, provavelmente originário de Vallagarina e arredores de Rovereto (con versões ligeiramente diversas no Brasil), trata da imigração como alternativa à exploração dos camponeses:

Quando saremo en Mèrica
la nova ritrovata,
noi ghe daren la zapa
ai siori del Tirol

E coi bafi de quei siori
noi ghe faremo tanti spazeti
sol per mostrarghe a quei baleti
quando en Tirolo  ritornaren!

I siori a menar ei boi,
le siore a menar el piof
e i contadini en Mèrica
a bever el vin nof!

Quando saren sul mare,
el mar farà le onde
arivederci, o bionde
no i ghe vedren mai più!

Non è la prima,
ne la seconda
la rizza e bionda
mi la voi sposar!

Quando estivermos na América,
a terra reencontrada (prometida),
nós lhes daremos a enxada,
aos senhores do Tirol!

E com os bigodes daqueles senhores
faremos tantas vassourinhas*
só para mostrar àqueles valentes
quando ao Tirol retornaremos!

Os senhores a levar os bois,
as senhoras a levar o arado
e os camponeses na América
a beber o vinho novo!

Quando estivermos no mar,
o mar fará ondas,
adeus, ó loiras,
não nos veremos mais!

Não é a primeira,
nem a segunda,
a de cabelos cacheados e loiros
eu quero esposar!

Spazet cappello

*Spazèt: a “vassourinha” à qual se faz referência na canção é um adorno típico do chapéu tirolês, sobretudo dos caçadores, porque feito com os pelos de animais de caça, geralmente do gamo ou da camurça e, por isso, chamado em alemão Gamsbart (“barba de gamo”). O típico chapéu verde adornado com uma pluma ou com a “vassourinha” é tradicionalmente usado na região alpina do Tirol, Áustria e Baviera.

     Para conter a crise no campo, a Igreja Católica atuava diretamente com o apoio do “Conselho Provincial de Agricultura do Tirol (al. Tiroler Provinzrat für Agrikultur; it. Consiglio Provinciale dell’Agricoltura del Tirolo), que fundou as primeiras cooperativas populares inspirando-se na encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII, publicada em 1891. Embora com início modesto e difícil, as cooperativas assumiram se popularizaram e assumiram um importante papel no ressurgimento econômico do Tirol do século XX. Um dos maiores expoentes da cooperação foi o padre Lorenzo Guetti (1847 – 1898) por sua colaboração direta na fundação de cooperativas e pela sua preocupação com o fenômeno migratório. Vale lembrar que a economia de montanha apresenta vários desafios por conta do ambiente físico, pois as áreas cultiváveis são menores e não permitem um grande número de trabalhadores, dificultando o aumento demográfico.

     Em seus estudos sobre a imigração, Grosselli (1991, p. 54) afirma que entre 1872 e 1914, entraram no Brasil 78.358 austríacos, dos quais cerca de trinta mil seguiram somente para a então província de São Paulo, mas dadas as precariedades nos registros, o número será provavelmente maior.

“Verificada a guerra violenta da Alemanha contra a emigração de seus habitantes para o Brasil, esta fonte não poderia ter sido melhor substituída senão pelos habitantes das terras do Tirol. As famílias são autenticamente patriarcais, seja pela dimensão, seja pela moralidade, união e amor ao trabalho. Sendo certo que a colonização não deve ser afrontada unicamente como elemento de evolução material, isto é, braços, mas decididamente valorizada como elemento de evolução social, que retempera o sangue e a virilidade brasileira, e coopera proficuamente para a nossa civilidade, parece que a esse desejo, melhor correspondem os emigrantes tiroleses”. (Giraldelli, 1992, p. 22)

     A fuga da pobreza e de uma possível nova guerra com o Reino Italiano eram motivos convincentes e reforçados no discurso das companhias de emigração que espalhavam no Tirol as notícias sobre o imperador do Brasil que oferecia terras a baixos custos e grandes áreas cultiváveis. Naturalmente, o cooperativismo não pôde impedir a emigração de milhares pessoas e a Igreja chegou a incentivar a imigração, entendendo que se tratava de uma forma de resolver os vários casos de extrema pobreza. Além disso, o Reino da Itália reivindicava publicamente a região italófona do Tirol em seu processo de “unificação” (indiscutivelmente imperialista) e, ainda que os tiroleses de língua italiana tivessem pouca simpatia pela Itália, era sabido que em caso de guerra, o Tirol Italiano se tornaria um campo de batalha (como realmente se tornou a partir de 1915).

     A influência clerical no processo emigratório foi relevante, porque enraizada na história dos episcopados de Trento e Bressanone (al. Brixen), outrora principados semi-autônomos confederados ao condado do Tirol e unidos ao Círculo Imperial Austríaco. O Tirol havia sido consagrado “terra santa” pelos jesuítas e tal simbolismo foi bastante explorado durante a resistência antinapoleônica de 1809 chefiada por Andreas Hofer, na qual mais de quatro mil tiroleses italianos caíram em batalha. Nesse contexto, o imaginário campesino via no Império Austríaco um fiel defensor do clero e “inimigo” da Itália positivista (que havia usurpado terras do papado), porque conservador era o Tirol que combateu Napoleão para manter sua ligação com a augusta Casa de Habsburgo, servidora da sé papal, em Roma.

Imperador Francisco José de Habsburgo.
Francisco José de Habsburgo.

A figura do imperador austríaco Francisco José (Francesco Giuseppe, Franz Joseph) inspirava na população rural um profundo respeito que será visto, inclusive, nas colônias brasileiras. Por outro lado, a figura de Garibaldi não encontrava grande admiração entre os tiroleses, pois estes já o haviam expulsado do Tirol em 1866, mas o maior “pecado” estava em seu intento de atacar o papa, em 1848, no qual Garibaldi se tornara automaticamente inimigo da Casa da Áustria, defensora do papa. Embora houvesse no Tirol Italiano alguns simpatizantes à unificação da Itália, o culto a Garibaldi representava no Tirol um ataque ao papado e ao império, assim como o anticlericalismo, típico dos vizinhos italianos, por conta do ideal revolucionário que inspirava a unificação italiana. É desse contexto histórico que se reforçaram nos camponeses do Tirol Italiano a identidade austríaca e o sentimento anti-italiano, sempre incentivados pelo clero e nobreza locais.

     Sobre a opinião política dos imigrantes tiroleses (trentinos) nas colônias do Brasil, Azzi (1990, p. 65), afirma que “havia simpatia natural pelo Império Austríaco, cuja orientação política se afinava melhor com as diretrizes marcadamente conservadoras da Santa Sé”. Também Lorenzoni (1975, p. 170) registra entre os tiroleses instalados nas colônias do Rio Grande do Sul o sentimento anti-italiano trazido da Europa, afirmando que:

“os trentinos mantiveram sempre a máxima união entre eles e um grande apego e saudade de sua cara Áustria, demonstrando sempre uma certa aversão à Itália e aos italianos. E não podia ser diferente se pensarmos no ambiente do qual haviam chegado e a educação que haviam recebido em sua pátria”.

     Nesse sentido, não é correto considerar os imigrantes tiroleses de língua italiana (trentinos) como imigrantes italianos. Levando em conta o contexto histórico, o aspecto linguístico não é suficiente para tanto, até porque a língua do cotidiano desses imigrantes não era o italiano, mas seus falares regionais. Outro aspecto relevante que se explica no contexto histórico é o da mudança linguística dos vales tiroleses ao longo do tempo: na região do Vinschgau (it. Venosta), hoje exclusivamente germanófona, falava-se o romanche até o século XVIII, ao passo que no vale do Leno (al. Leimtal), em Vallarsa (al. Brandtal) e em Trambileno (al. Trummelays), vales hoje quase exclusivamente italófonos, falava-se o alemão cimbro (antigo dialeto bávaro) até metade do século XIX. Muitos imigrantes tiroleses de língua italiana (principalmente os homens por causa do serviço militar obrigatório) conheciam o idioma alemão.

     O apego ao império e à Igreja fica bem evidente em um poema de 1903, escrito em homenagem ao cônsul austríaco Carlo Bertoni, quando de sua visita à então Colônia Rio dos Cedros, em Santa Catarina, fundada a partir do núcleo colonial de Blumenau e habitada quase que exclusivamente por tiroleses. Após o trajeto feito pela da Estrada dos Tiroleses (ainda existente, em direção a Timbó), o cônsul chega à colônia, onde foi recebido com festa pela população. No livro História da imigração italiana de Rio dos Cedros (2000, p. 113), o padre salesiano Victor Vicenzi narra o acontecido como um acontecimento memorável e emocionante para os colonos mais velhos, imigrantes que abraçavam o cônsul “com extrema simpatia e amizade”, pois o diplomata “representava o governo daquela nação, chefiada pelo Imperador Francisco José”. O momento de maior destaque da visita parece ter sido o discurso de recepção feito pela pequena Ottilia Agostini, então com apenas seis anos de idade, que recitou o poema escrito em perfeito italiano pelo professor da comunidade, Vergilio Campestrini:

 Eccelenza, Console Austriaco, Carlo Bertoni!

 Noi siam nati in strani lidi
Dagli Austriaci genitor
E sapiam che noi siam figli
D’una Patria e d’un Signor
.

Ce lo dicon babbo e mamma
Che il destin qui li riduce,
Nostra Patria è giù lontana
E’ lontana, è nel Tirol
.

La son nati gli avi nostri
Là sepolti negli avel,
Nel Tirolo son rimasti
Ancor vivi genitor

Quando entriamo nella scuola
Per la grazia del Signor
Figli attenti alla parola
Dice il Padre dell’amor.

Di Europa in continente
Nel suo seno l’Austria stà
Amplo è il regno e colta gente
Ricco il suolo d’ammenità.

L’Austria abbonda di miniero
Di granaglie, frutta e fior,
L’Austria Impero, è un bel paese
Dove pace regna ognor.

Città grande in piano colle
S’erge Viena d’Austria Impero
Viena antica è capitale
Dell’antico e vasto regno.

E noi tutti ti preghiamo
Ò Eccelenza qui venuto,
Ci annunzierai un pio saluto
A Sua Maestà, l’Imperator.

Nós nascemos em paragens estrangeiras
De genitores Austríacos
E sabemos que somos filhos
De uma Pátria e de um Senhor.

Isso nos dizem papai e mamãe
Que o destino para cá os trouxe,
Nossa Pátria está longe,
está longe, é no Tirol.

Lá nasceram nossos antepassados
Lá estão sepultados na terra,
No Tirol permaneceram
Ainda vivos os pais.

Quando entramos na escola
Pela graça do Senhor
Filhos atentos à palavra
Diz-nos o Pai do amor.

No continente da Europa
No seu centro a Áustria está
Amplo o reino e culta a gente
Rico o solo de variedades.

A Áustria abunda de minério
De grãos, frutos e flores,
A Áustria Império é um belo país
Onde reina eterna paz.

Cidade grande em plaina colina
Ergue-se Viena da Áustria Império
Viena antiga é capital
Do antigo e vasto reino.

E nós todos te pedimos,
É Excelência aqui vindo
Anunciarás uma carinhosa saudação
A Sua Majestade, o Imperador.

     A assim hoje chamada “imigração trentina” precisa ser analisada com ressalvas, pois não se trata de “imigração italiana” em sentido restrito. Considerando-se apenas o aspecto linguístico, poderíamos analisá-la nesse sentido. Parece ser necessário considerar a pluralidade da Áustria-Hungria de então. Apesar de o governo imperial austríaco, na tentativa de frear o fluxo migratório, obrigasse muitos de seus súditos a renunciarem à cidadania austríaca (tratava-se, na realidade, de uma renúncia escrita feita apenas no verso do passaporte), a identidade dos imigrantes tiroleses demonstrada em relatos da época, indica que se tratou, realmente, de imigração de austríacos de língua italiana. Antes de chamá-la “imigração trentina”, acreditamos que o mais correto seja utilizar a denominação histórica “imigração tirolesa”. Naturalmente, esta não exclui aquela, mas o contrário desconsidera os tiroleses de língua alemã e o contexto sociocultural do império.

     Outro fato relevante é que os próprios imigrantes se referiam a si próprios como tiroleses (fossem de língua italiana que alemã), ao passo que a “trentinidade” é um fenômeno mais recente. Ao que tudo indica, os tiroleses transferiram para Dom Pedro II seu profundo respeito pelo imperador austríaco Francisco José de Habsburgo e com a proclamação da República no Brasil, em 1889, vários jornais do Tirol, sobretudo os de estampa católica estampados em Trento, manifestaram sinais de indignação e luto (Grosselli, 1999, p. 184).

     Um texto do jornal de Trento La Voce Cattolica sobre os imigrantes, publicado de 06 de junho de 1878, indicava que somente um núcleo fazia referência à terra de origem e tratava-se da comunidade de São José do Tirol no II Território. Em outra publicação, o jornal tratou das precariedades e da decadência da Colônia Nova Levico, batizada com este nome provavelmente porque fundada por tiroleses saídos do vilarejo de Levico Terme, na Valsugana (Tirol Italiano, atual Província de Trento). Todavia, várias são as localidades brasileiras cuja toponomástica faz referência à região de origem, comprovando a ligação histórica que une os dois principais grupos linguísticos desse território alpino, ou seja, tiroleses alemães e italianos:

  • No Espírito Santo, a Colônia Tirol em Santa Leopoldina, fundada por tiroleses de língua alemã saídos de Wipptal e demais vales do Tirol alemão;
  • Em São Paulo, na cidade em Piracicaba, os bairros rurais Santana e Santa Olímpia formam juntos a Colônia Tirolesa, fundada entre 1892 e 1893 por imigrantes saídos principalmente de vilarejos nos arredores da cidade de Trento. Ainda no estado paulista, a comunidade rural de Traviú, fundada em 1893 por tiroleses e vênetos na cidade de Jundiaí, é conhecida na região por ser um local de imigração tirolesa;
  • Na cidade paranaense de Piraquara, próxima a Curitiba, encontra-se a Colônia Santa Maria do Novo Tyrol, fundada em 1878 por imigrantes do Vale de Primiero (Tirol Italiano);
  • No estado de Santa Catarina (onde reside a maior comunidade de descendentes de tiroleses do Brasil), a mais antiga estrada da cidade de Nova Trento, no distrito de Claraíba, local do primeiro núcleo colonial da cidade, se chama Rua Tirol. Entre as cidades catarinenses de Rio dos Cedros e Timbó, fundadas em 1875, a antiga estrada colonial se chama ainda hoje Rua Tiroleses findando na cidade de Timbó, existe a Comunidade Tiroleses; a vizinha cidade de Rodeio, fundada no mesmo ano, é conhecida no Vale do Itajaí pela imigração de tiroleses italianos. A mais nova colônia é a cidade catarinense de Treze Tílias, fundada em 1932 por imigrantes de língua alemã saídos do Tirol austríaco e da Província de Bolzano, conhecida como Tirol Brasileiro.
  • No estado de Rio Grande do Sul, na comunidade rural Temerária, pertencente ao município de Nova Petrópolis, existem a estrada rural e a igreja de Novo Tirol. Em Caxias do Sul, temos a Praça dos Tiroleses, onde se encontra o Monumento aos Tiroleses e com a mesmo adjetivo foram identificados os descendentes desses imigrantes que se instalaram nas antigas colônias onde hoje se localizam as “cidades italianas” da Serra Gaúcha, muitos dos quais saídos da Vallarsa e falantes do slambròt (alemão cimbro).

     Portanto, austríacos de língua italiana ou, ainda, italianos da Áustria, os imigrantes tiroleses vinham de uma realidade ligada ao mundo germânico por oito séculos e não eram como os italianos do Vêneto e da Lombardia. Realidades distintas, ainda que semelhantes. E os motivos se justificam na secular convivência – e mescla – dos tiroleses de língua italiana com seus “primos” do Tirol alemão ou das região ladinas, com os quais compartilham inúmeras características culturais e identitárias.

     Culturalmente ligados a Viena e a Innsbruck, fiéis ao clero e ao governo imperial austríaco, os tiroleses italianos (ou trentinos) demonstraram também no Brasil sua identidade nacional. Vale lembrar, por exemplo, o caso dos imigrantes cimbros (falantes do alemão cimbro e do vêneto), saídos da região montanhosa de Verona (já território da Sereníssima República de Veneza, após 1815 do Reino Lombardo e, a partir de 1866, do Reino da Itália) que, apesar do antigo idioma germânico, eram imigrantes italianos e assim se definiam. Muitas famílias cimbras se estabeleceram na região de Antônio Prado, Rio Grande do Sul, onde o idioma sobreviveu até meados de 1940. Hoje, os descendentes falam apenas o vêneto (ou o talian), idioma que também era conhecido pelos imigrantes.

(Documentário “Eco das montanhas” sobre a imigração de vênetos falantes do alemão cimbro no RS).

     Na verdade, um consenso político sobre o sentimento nacional italiano era bastante controverso até mesmo entre os imigrantes vênetos, chegados ao Brasil entre 1874 e 1875, poucos anos após a anexação do Vêneto ao Reino da Itália, em 1866. Essa heterogeneidade de posicionamentos políticos se refletia, inclusive, entre as várias congregações religiosas “italianas” atuantes nas colônias do Brasil; registram-se vários casos de disputas e discussões acirradas entre essas congregações, sobretudo no que se refere à educação das crianças, filhos e netos de imigrantes, e à fundação de escolas nas áreas coloniais do Brasil.

     Os franciscanos, por exemplo, demonstravam maior afinidade política com a Áustria, ao passo que escalabrinianos e jesuítas, eram mais tolerantes ou até mesmo partidários no que se refere às ideias que cerceavam a unificação italiana. Em seu livro Catolicidades e italianidades- Tramas e poder em Santa Catarina (1875 – 1930), a historiadora catarinense Claricia Otto aborda as “tentativas de fazer italianos” promovidas pelos agentes consulares da Itália no Brasil, sobretudo a partir de 1880, no intuito de incentivar o patriotismo nas colônias italianas (mas também entre as comunidades tirolesas de língua italiana), haja vista que muitos imigrantes não demonstravam nenhum interesse quanto aos “valores nacionais” da Itália unificada.

Os líderes da comissão das escolas Dante Alighieri, por meio de missivas enviadas ao bispo, denunciam a pressão que os franciscanos exerciam sobre os colonos que enviavam seus filhos às escolas italianas Dante Alighieri. Em uma dessas cartas consta que frei Modestino alcunhou a escola italiana instituída em Caminho dos Tiroleses de maçônica e encetou esforços para suprimi-la. (Otto, 2008, p. 147)

     No Vale do Itajaí, em Santa Catarina, os líderes das escolas Dante Alighieri, de inspiração positivista e segundo os ideais da unificação italiana, recebiam auxílio dos representantes consulares italianos, muito mais atuantes que os representantes austríacos. As escolas Dante Alighieri procuravam substituir as poucas escolas mantidas pelos tiroleses e frades, mas encontravam oposição dos missionários franciscanos (geralmente alemães e franceses), o que parece não ter ocorrido em locais onde atuavam congregações “italianas”, isto é, fundadas na Itália e com missionários italianos, como em Nova Trento.

O interesse recôndito dos jesuítas não era a alfabetização, mas em primeiro lugar a educação religiosa das fileiras de colonos e, em segundo plano, a fortificação do espírito ‘italiano’ daquela gente (coisa inicialmente nada simples com os trentinos, que em sua maioria se sentiam fortemente tiroleses e em todo caso súditos fieis do imperador austro-húngaro)”. (Boso, 2002, p. 52)

     Vale lembrar que maioria dos tiroleses italianos emigrou no final do século XIX e, portanto, antes da Primeira Guerra Mundial e da anexação do Tirol Meridional ao Reino da Itália. Por serem imigrantes austríacos – que assim se identificavam -, os tiroleses participavam da realidade cultural italiana como estrangeiros. As “disputas” seriam vistas nas colônias principalmente após 1915, com a declaração de guerra do Reino da Itália ao Império da Áustria-Hungria.

     Vários autores que tratam da imigração italiana no Rio Grande do Sul (Luzzatto, 1993; Costa, 2001; Possamai, 2004; Corrêa, 2014) documentam casos de violência verbal e até mesmo física entre imigrantes italianos (sobretudo vênetos) e austríacos (tiroleses) nas áreas coloniais gaúchas, pois o convívio com os colonos italianos era considerado uma “ameaça” pelos nacionalistas austríacos (Lorenzoni, 1975; Grosselli, 1990; 2008) por conta do ideal de unificação italiana que reivindicava a anexação de Trento e Trieste. Esse relacionamento, naturalmente, não impediu casamentos mistos, mas dividiu famílias e se tornou mais complicado nos anos da Primeira Guerra Mundial e principalmente após a guerra, com o fim da monarquia austro-húngara e a anexação do Tirol Meridional pelo Reino da Itália. Possamai (2004, p. 21) comenta que na cidade de Muçum, no Rio Grande do Sul, a notícia da morte do Imperador Francisco José da Áustria ocasionou uma confusão, pos os tiroleses haviam organizado uma missa fúnebre que não contou com o badalar de sinos, pois os colonos italianos haviam roubado o badalo para impedir os dobres e a homenagem.

     As “confusões” entre tiroleses e italianos surgidas no período da Primeira Guerra Mundial em algumas colônias de Santa Catarina e no Rio Grande do Sul foram documentadas em jornais de época que traziam notícias da guerra, como a Gazeta do Commercio, de Joinville, e os jornais gaúchos Il Colono, La città di Caxias, Stella d’Italia, La voce d’Italia, L’unione, Bento Gonçalves, entre outros. Merece atenção o jornal “gaúcho” Il Trentino, publicado entre 1915 e 1917 em língua italiana, portuguesa e alemã, “órgão da Sociedade Trento- Trieste de Porto Alegre e dos demais Italianos Austríacos residentes na América do Sul”, sob a direção do médico Andreatti. Tratou-se de um jornal que circulou desde o Rio Grande do Sul até o Espírito Santo e se definia “voz” da colônia austríaca no Brasil.

iltrentino
Exemplar do Jornal Il Trentino, de Porto Alegre. Coleção do Museu da Comunicação Social de Porto Alegre – RS.

     Apresentamos algumas estrofes da canção Colpo de Canon (“golpe de canhão”), ainda mantidas na Colônia Tirolesa de Piracicaba, estado de São Paulo, que retrata em italiano (realidade linguística) o sentimento anti-italiano (realidade cultural e política) dos imigrantes tiroleses e triestinos. Também registramos estrofes entre descendentes de tiroleses em Rodeio, no estado de Santa Catarina, em Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais e no Espírito Santo.

 Föra, föra talianòti
paura non abiamo,
co la forza del cortelo
la pace noi faciamo
.

Bim, bom, bom
el colp de canon!

Garibaldi ‘l ga na rogna
Vittorio ‘l ga la grata
Francesco co la zapa
ghe le rua da gratar.

Garibaldi l’èi n’inferno,
Vitorio ancor pu fondo
Francesco per el mondo
el faremo encoronar!

La nostra è giala e nera
Austriaca bandiera
Austriaca bandiera
faremo ventolare!

Fora, fora “italianinhos”
medo nós não temos,
com a força da faca
a paz nós fazemos.

Bim, bom bom
O golpe do canhão! (Refrão)

Garibaldi tem coceira
Vitório tem a sarna
Francisco com a enxada
Os termina de coçar

Garibaldi está no inferno,
Vitório ainda mais fundo
Francisco pelo mundo
faremo-lo coroado!

A nossa é amarela e preta
austríaca bandeira
austríaca bandeira!
faremos tremular!

Giuseppe Maria Garibaldi ou Joseph Marie Garibaldi (1807 – 1882), guerrilheiro franco-italiano, general e comandante de tropas revolucionárias durante as guerras de unificação italiana.
Vitor Emanuel de Savóia (Vittorio Emmanuele di Savoia, 1820 – 1878), monarca do Reino da Sardenha e primeiro rei da Itália.
Francisco José de Habsburgo (Franz Joseph von Habsburg ou Francesco Giuseppe d’Asburgo, 1830 – 1916), imperador da Áustria e rei da Hungria.
Amarelo e negro são as cores imperiais da Casa de Habsburgo e da monarquia austríaca. A bandeira do Império da Áustria-Hungria possuía as cores amarela e preta.

Cartão postal com a bandeira imperial austríaca e figura do imperador.
Cartão postal com a bandeira imperial austríaca e figura do imperador.

     Nas palavras do irredentista trentino Cesare Battisti, em uma correspondência datada de 3 de setembro de 1915, os tiroleses da região trentina eram “italianos apenas na língua e no coração, pois o espírito e o modo de pensar são outra coisa que italianos” (Baldi, 2005: 36). De nacionalidade austríaca, os imigrantes tiroleses podiam ser de língua italiana, alemã ou ladina, mas a cultura de montanha era sua maior peculiaridade e sua nacionalidade era austríaca. Ora, a complexa identidade dos imigrantes tiroleses foi trazida para as áreas coloniais do Brasil onde, com o passar do tempo, assumiu características novas, seja pela mudança de ambiente que pelas influências culturais e sociais advindas do contato com brasileiros e demais imigrantes.

     Vemos que a identidade tirolesa se manteve no Brasil apesar de todas as intempéries, como o fim do Império da Áustria-Hungria e a pressão de entidades culturais italianas em algumas comunidades, as repressões nacionalistas durante o governo do presidente Getúlio Vargas, a modernidade que chegou com a difusão dos meios de comunicação que suprimiam o uso da língua dos ancestrais. Por sua vez, a identidade “trentina” entre os descendentes de tiroleses é mais recente e se insere no contexto cultural ad hoc (por vezes baseado em estereótipos) que se molda a partir de 1970. Não é relevante se os descendentes se consideram descendentes de austríacos ou italianos, mas até algumas décadas atrás a memória dos descendentes mais velhos fazia referência ao Tirol e à Áustria, pelo simples fato de os imigrantes terem sido tiroleses e cidadãos austríacos. Desde o Espírito Santo até o Rio Grande do Sul, o uso do adjetivo “trentino” em contraposição a “tirolês” está indiscutivelmente associado à fundação de Círculos Trentinos ou Famílias Trentinas, entidades que agregam muitos descendentes e mantém vínculos com Ongs italianas sediadas em Trento.

     É a partir desse contexto que se explicam, por exemplo, realidades como a do “colono italiano” Francesco Merlo, que chegou ao Brasil com passaporte austríaco e pedia o ressarcimento dos gastos feitos com moeda austríaca para que pudesse emigrar. Sua realidade linguística justifica a imigração italiana, ao passo que sua nacionalidade a austríaca. Todavia, indicar o Tirol como uma região na Itália não é um equívoco geográfico, pois parte do território tirolês se localiza realmente no norte da península conhecida há séculos como Itália, embora à época da imigração os sentimentos nacionais fossem outros.

—-

Referências bibliográficas:

Baldi, Massimo. Austriaci d’Italia – tra storia dimenticata e identità. Trento: UCT, 2005.
Boso. Ivette M. Noialtri chi parlen tuti en talian – Dialetti trentini in Brasile. Trento: FMST, 2002.
Corrêa, Marcelo Armellini. Dos Alpes do Tirol à Serra Gaúcha: a questão da identidade dos imigrantes trentinos no Rio Grande do Sul (1875 – 1918). Dissertação de Mestrado em História. São Leopoldo: Unisinos, 2014.
Costa, Rovílio & Battistel, Arlindo. Stòria e fròtole. Porto Alegre: Est, 2000.
Grosselli, Renzo Maria. Vincere o Morire. Trento: PAT, 1986.
_________. Da schiavi bianchi a coloni. Un progetto per le fazendas. Trento: PAT, 1987.
_________. (org). Trentamila tirolesi in Brasile (atti del convegno). Trento: ARTS, 2005.
Lorenzoni, Júlio. Memórias de um imigrante italiano. Porto Alegre: Sulina / PUC RS, 1975.
Luchese, Ângela. Relações do poder: autoridades regionais e imigrantes italianos nas colônias Conde d’Eu, Dona Isabel, Caxias e Alfredo Chaves – 1875 a 1889. Dissertação de mestrado em História. Porto Alegre: PUC, 2001.
Luzzatto, Darcy Loss. El nostro parlar (e outras crônicas). Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 1993.
Otto, Claricia. Catolicidades e italianidades – Tramas e poder em Santa Catarina (1875 – 1930). Florianópolis: Insular, 2006.
Possamai, Paulo César. Imprensa e italianidade: RS (1875 – 1937). In: Dreher, Martin N; Rambo, Arthur B.; Tramontini, Marcos J. (orgs). Imigração e imprensa. Porto Alegre: EST/Instituto Storico de São Leopoldo, 2004.
Prutsch, Ursula. A emigração de austríacos para o Brasil (1876 – 1938). Brasília: Embaixada da Áustria no Brasil, 2011.
Tonina, Osvaldo. Dall’Antologia di Don Livio Rosa. Tra gli scritti rimasti: l’Inno al Tirolo. Trento: Nuove Arti, 2006.
Vicenzi, Victor. História da imigração italiana de Rio dos Cedros. Blumenau: Odorizzi, 2000.
Vitti, Guilherme. “En contadin de Meano che s’ha fat bon brasiliano” – Centenario dell’imigrazione dei tirolesi del Municipio di Piracicaba – Brasile 1877-1977 (texto apresentado como apêndice na dissertação de Grosselli, 1990).

5 comentários em “Revista Blumenau em Cadernos”

  1. Parabéns ao autor. Pretendo reler e estudar um pouco mais as minhas origens: família Pedò, do Val di Non, principalmente Campodenno, Sporminore e Mezzolombardo. Meu bisavô (Giovanni Battista Pedò) veio para o Rio Grande do Sul (Garibaldi), no ano de 1876, trazendo os filhos nascidos no Tirol; outros filhos nasceram no Brasil. Um primo de Giovanni Battista Pedò (Celeste Giovanni Pedò) veio para o Brasil cerca de 1879, radicando-se em Caxias do Sul. Outros primos foram para os Estados Unidos (Michigan), na mesma época ou pouco depois. Hoje o número de descedndentes é muito grande, porque as famílias eram bem numerosas.

    Curtir

  2. Parabéns, sou descendente da família Girardi que veio de Civezzano para Garibaldi no Rio grande do Sul em 1875.
    O resgate de nossas origens tirolesas é muito importante, pois esta sendo esquecida ou confundida por muitos, com a italiana.

    Eu, até pouco tempo atrás imaginava que tudo era uma coisa só, pois o fato de falarem dialeto italiano e a anexação pela Itália, induz a esse erro.

    Curtir

    1. Prezado Sr. Girardi:
      Obrigado por seu comentário. O intuito deste blog é exatamente esse, ou seja, apresentar a imigração tirolesa a partir de suas peculiaridades e, sobretudo, a partir da identidade dos próprios imigrantes.

      Curtir

  3. Sou descendente de imigrantes tiroleses, meus trisavós Giacomo Sperandio e Anastazia Loss vieram da região de Trento, por muito tempo fui levada a pensar erroneamente que meus antepassados eram italianos mas aos poucos descobri que se tratava de austríacos. Pretendo passar a informação correta aos familiares.

    Curtir

    1. Prezada Sra. Sperandio:
      O intuito de nosso blog é exatamente esse: informar para que as pessoas conheçam um pouco mais sobre a imigração e, no caso dos descendentes, sobre suas próprias origens. Gratos pelo comentário.

      Curtir

Deixe um comentário