O Canto da Estrela em Nova Trento

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Calendário Reimmichl com os stelàri/Sternsinger

Uma tradição secular do período natalino que se preserva em Nova Trento, Santa Catarina, e que chama a atenção pela riqueza de simbolismos.

Prof. Dr. Misael Dalbosco (Nova Trento, SC)

As instruções que emanavam do Vaticano aos religiosos de todo o mundo, no final do século XIX, enfatizavam a necessidade de romanização dos costumes católicos, que na época eram permeados de particularidades locais e tradições regionais em praticamente todas as partes do globo, incluindo aí o Condado do Tirol. Os tiroleses, povo fervorosamente católico, criaram ao longo dos séculos um grande número de tradições e costumes ligados à religião, alguns comuns à toda a região, outros específicos deste ou daquele vale. As tradições tirolesas de Natal, por exemplo, foram abordadas neste post.

Obedientes às ordens que vinham do Vaticano, os jesuítas que se instalaram em Nova Trento (SC) a partir da década de 1880 exerciam um controle severo da vida social da comunidade. Perseguindo o ideal de romanização, certamente tiveram influência sobre o desaparecimento de diversos aspectos culturais dos imigrantes (em sua maior parte, provenientes do Tirol), como danças, músicas e festas profanas. A música popular tocada na stradella (gaita de 8 baixos), muito comum na região alpina, era condenada como pecaminosa, por exemplo. Além disso, a campanha de nacionalização promovida durante o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) também contribuiu fortemente para o desaparecimento de costumes trazidos pelos imigrantes em praticamente todas as zonas de colonização europeia do Brasil, incluindo aí Nova Trento.

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Grupo de descendentes de tiroleses se diverte ao som da stradella em Nova Trento. Fonte: Al Fero

Algumas tradições, no entanto, parecem ter sido toleradas, ou menos combatidas, seja pelos padres, seja pelo governo brasileiro. Um costume que desafiou as décadas e chegou aos nossos dias é o do Canto da Estrela. Na tradição tirolesa original, um grupo de cantores (it. stelàri, al. Sternsinger) passa de casa em casa nas noites do período que vai do Natal à Epifania cantando músicas que anunciam o nascimento de Jesus e contam a história do Natal. Três dos cantores vão vestidos como os Reis Magos, e o grupo leva à sua frente uma estrela, normalmente girante e iluminada.

A tradição é em vários aspectos similar ao Terno de Reis dos descendentes de açorianos do litoral catarinense (porém na tradição açoriana não estão presentes as figuras dos Reis Magos). Talvez por isso, o Canto da Estrela foi tolerado durante a campanha de nacionalização, apesar das músicas serem cantadas em italiano ou no dialeto tirolês, línguas proibidas à época. Da mesma forma, por se tratar de tradição fortemente católica, o Canto da Estrela parece ter sido tolerado pelos jesuítas, de forma que pôde alcançar nossos dias.

Pelo menos até a década de 1980, as serenatas de Natal, em que se cantavam músicas tradicionais como O Felice O Cara Notte, Oi della Casa, San Giuseppe Vecchiarello, Dio Vi Conceda e outras, sobreviveram em Nova Trento, levadas adiante por um grupo de cantores, muitos dos quais membros da banda da cidade. Algumas vezes, as serenatas ainda contavam, como na tradição original, com a presença dos Reis Magos e da Estrela; além disso, o repertório passou a incluir também algumas músicas em português.

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Canto da Estrela na década de 1980 em Nova Trento. Fonte: Al Fero

Na década de 1990 a tradição parece ter desaparecido. Preocupado com a perda de parte importante do patrimônio imaterial da cidade, o historiador Jonas Cadorin, no dia de Corpus Christi de 2007, reuniu um grupo de cantores, alguns dos quais participavam das serenatas na década de 1980, e dessa reunião resultou o CD Un Ricordo di Natale, que traz as músicas tradicionais de Natal em italiano e dialeto tirolês. Entre elas, algumas preciosidades como Lodate Maria e uma versão neotrentina de Tu Scendi Dalle Stelle, cujas melodias foram recuperadas por Cadorin junto à pessoas idosas do município, hoje já falecidas.

A partir do lançamento do CD, o grupo (auto-entitulado Divino Pargoleto, em alusão a um trecho da música Tu Scendi Dalle Stelle) também trouxe de volta a tradição do Canto da Estrela, que passou a ser realizado no tempo do Advento. Mais de 140 anos após a imigração, os stelàri tiroleses continuam anunciando a boa nova do nascimento de Cristo às famílias de Nova Trento.

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Canto da Estrela em Nova Trento. Fonte: Blog I Pargoleti

2 comentários em “O Canto da Estrela em Nova Trento”

  1. Sempre gostei muito de conhecer a história principalmente da colonização da nossa região. Por conta das tradições familiares e dos assuntos velados, entendi que existiam traumas nessa história e durante um tempo, mesmo insatisfeita com o que tive acesso, respeitei e aceitei. Hoje faz muito mais sentido entender que a tal Primeira Colonia Italiana no Brasil – Colônia em São João Batista/SC – não ter sido colonizada por italianos e sim por Austríacos. Tendo em vista que não faz sentido Nova Trento atualmente cultivar costumes Italianos e em São João Batista que é tão próximo não. Isso tudo era muito esquisito pra mim. Sinto muita falta do cultivo da história, das raizes, costumes, enfim de manter a cultura. Eu sempre ouvi que somos descendentes de Italianos e olho meu avô so consigo enxergar uma alemão hahahaha agora sim, faz todo sentido depois de conhecer a história da família e todo material postado aqui. Sou grata e adorei ter lido todo material aqui postado. Parabéns!

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    1. Olá Alexandra, obrigado por seu comentário!

      Na verdade, os imigrantes que fundaram a colônia “Nova Itália” – atual comunidade de Colônia, em São João Batista – não eram austríacos. Em 1836, quando os colonos chegaram ao Brasil, a península italiana estava dividida entre vários reinos – um deles era o Reino da Sardenha, do qual vieram os imigrantes italianos que se estabeleceram em São João Batista, das famílias Zunino, Pesco (que virou Peixe ou Peixer), entre muitas outras.

      Outro “pedaço” da península onde hoje fica a Itália era a região do Tirol do Sul (onde fica a cidade de Trento), essa sim pertencente à Áustria, ou, melhor dizendo, ao então Império Austríaco – até 1918, após a Primeira Guerra, quando passou para o Reino da Itália. Por isso, os imigrantes que fundaram Nova Trento, a partir de 1875, eram – na maior parte – austríacos, pois vinham dessa região. Embora falassem um dialeto italiano (que ainda hoje se fala em Nova Trento), seus costumes e até sua aparência tinha sim muita influência das regiões alemãs do Tirol e da Áustria, que eram “vizinhas”. Talvez daí venha a sua impressão ao ver seu avô.

      Na verdade, como por muitos séculos a península italiana esteve dividida em diversos reinos, no tempo da imigração, dizer que o imigrante era “italiano” não queria dizer que ele vinha do país Itália (que não existia), mas sim, que vinha de uma das muitas regiões da península. Por isso, de certa forma, os imigrantes de Nova Trento eram “italianos”, ainda que cidadãos austríacos, e os imigrantes de Colônia, em SJB, eram “italianos”, ainda que cidadãos do Reino da Sardenha. Naquele tempo, existiam muitos tipos de “italianos”.

      Trazer de volta essas histórias é o grande objetivo do nosso Blog, da mesma forma como, recentemente, parece estar se formando um movimento para trazer de volta a história da primeira colônia italiana do Brasil – a localidade de Colônia, em São João Batista.

      Abraços e obrigado por acompanhar o Blog!

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