Dupla cidadania

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Foto: ANSA / ANSA Brasil

Diversas vezes neste Blog fizemos referência ao fato histórico de que a atual região italiana do Trentino-Südtirol (províncias autônomas de Trento e Bolzano) pertenceu ao Império da Áustria até o fim da Primeira Guerra Mundial (em 1918). Apesar de historicamente documentado, esse é um fato relativamente pouco conhecido, sobretudo entre os descendentes brasileiros de tiroleses italianos (muitas vezes chamados hoje de trentinos) emigrados a partir de 1874 para o Brasil; tendo em vista que esses imigrantes falavam um dialeto itálico, é comum que os descendentes pensem que seus antepassados tenham emigrado da Itália, e não da Áustria.

Prof. Dr. Misael Dalbosco (Nova Trento, SC)

A atual República da Áustria é um país relativamente pequeno, onde se fala a língua alemã; porém não era essa a situação no final do século XIX e início do século XX: a Áustria-Hungria, formada pela união do Império da Áustria e do Reino da Hungria era um vasto país na Europa Central, no qual conviviam dezenas de etnias e que possuía, inclusive, um grande número de línguas oficiais. Entre elas, obviamente, o alemão e o italiano.

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Nota de 20 coroas austríacas, com o valor escrito em 9 línguas, inclusive alemão e italiano. Clique para ampliar. Fonte: https://www.allnumis.com/

Assim sendo, os imigrantes que deixaram a atual província de Trento, na Itália, falavam sim um dialeto itálico como língua materna, porém eram de nacionalidade austríaca. Já em terras brasileiras, esses imigrantes manifestaram em diversas ocasiões seu apreço pelo país natal, a Áustria; algumas dessas manifestações já foram mencionadas em outros posts do Blog.

Sociedade Cooperativa San Giuseppe Rodeio SC
Sociedade Cooperativa “San Giuseppe”, em Rodeio (SC), cidade fundada por tiroleses italianos. Nesta foto de 1912 pode-se ver ao fundo a bandeira amarelo-negra com a águia imperial austríaca. Clique para ampliar.

Tendo em vista essa situação, muitos leitores nos escrevem questionando acerca de seu direito de obter a dupla cidadania das atuais República da Áustria e/ou da Itália. Tendo em vista o complicado processo de dissolução do Império Austríaco, essa resposta pode ser bastante complexa, até porque está relacionada com os tratados de paz que foram assinados após o final da Guerra. Este post tem por objetivo, portanto, esclarecer algumas questões relacionadas a esse tema.

CIDADANIA AUSTRÍACA

O tratado de Saint-Germain-en-Laye foi assinado em 1919 entre os poderes aliados e a República Alemã da Áustria, que havia sido declarada meses antes, em face ao esfacelamento do Império. Esse longo documento tratava em detalhes do que aconteceria com as terras do antigo Império Austríaco dali para frente, incluindo aí questões referentes à cidadania das pessoas que moravam nesses locais. [1]

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Antigo passaporte austríaco. Clique para ampliar.

As fronteiras da atual República da Áustria ainda correspondem, aproximadamente, àquelas definidas no tratado de Saint-Germain. No que diz respeito à cidadania austríaca, no artigo 64, o documento afirma que a cidadania austríaca seria concedida automaticamente àqueles que fossem registrados nas cidades que passariam a compor a República da Áustria. [1]

O mesmo tratado previa, no artigo 70, que aqueles registrados em cidades que, dali para frente, não pertenceriam mais à Áustria perderiam automaticamente a cidadania austríaca e adquiririam a cidadania do país ao qual essas cidades passariam a pertencer – no caso dos sul-tiroleses, a Itália. [1] Portanto, no momento que o tratado entra em vigor, todos os então habitantes da atual região Trentino-Südtirol perderam a cidadania austríaca. Por isso, não é possível, para um descendente de imigrantes sul-tiroleses, solicitar a cidadania austríaca. A atual República da Áustria só concede a dupla cidadania aos descendentes de pessoas que emigraram após a entrada em vigor do Tratado de Saint-Germain.

Pelos mesmos motivos, também não é possível a obtenção da cidadania austríaca por parte dos descendentes de austríacos poloneses da Galícia (hoje, pertencente à República da Polônia), de austríacos da Boêmia (hoje, pertencente à República Tcheca) e outros em situação similar.

CIDADANIA ITALIANA

No que diz respeito à cidadania italiana, ainda por força do artigo 70, todos aqueles que habitavam a atual região Trentino-Südtirol a partir da entrada em vigor do Tratado de Saint-Germain adquiriram a cidadania italiana, ao perder a cidadania austríaca. [1]

No caso daqueles nascidos nessas cidades, mas que haviam emigrado, o Tratado previa, no seu artigo 78, o direito dessas pessoas de optar por adquirir a cidadania italiana. Nesse caso, o tratado previa que essas pessoas deveriam mudar-se para a Itália no prazo de 1 ano. [1]

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Assinatura do Tratado de Saint-Germain. Clique para ampliar. Fonte: Imperial War Museum

A maioria dos imigrantes do atual Trentino-Südtirol que haviam se estabelecido em terras brasileiras e que ainda estavam vivos na data de entrada em vigor do Tratado de Saint-Germain não fizeram essa opção. É provável que boa parte deles nem tenha ficado sabendo dessa possibilidade. E mesmo que o tivessem, boa parte deles já havia adquirido a cidadania brasileira e estavam bem estabelecidos em suas colônias, e provavelmente não teriam intenção ou possibilidade de se mudar de volta para a Europa.

Muitos anos depois, por meio da lei n° 91, de fevereiro de 1992, o governo italiano definiu as regras para aquisição de cidadania italiana para os oriundi¸ ou seja, descendentes dos imigrantes italianos que se espalharam pelo mundo em fins do século XIX e durante o século XX. [2] A partir dessa data, milhares de brasileiros descendentes de italianos passaram a procurar os consulados da Itália buscando obter a dupla cidadania italiana.

Dentre esses, muitos eram na verdade descendentes de tiroleses de língua italiana, que ao chegar ao consulado eram informados que seu antepassado, apesar da língua, não era cidadão italiano, mas austríaco; e que, por esse motivo, não poderiam requisitar a cidadania italiana, que seus antepassados jamais haviam possuído.

Isso mudou no ano 2000, quando o parlamento aprovou a lei n° 379, que trata do “reconhecimento da cidadania italiana às pessoas nascidas e anteriormente residentes nos territórios pertencentes ao Império Austro-Húngaro, e seus descendentes”. Essa lei abriu a possibilidade, aos descendentes de imigrantes do atual Trentino-Südtirol, de requisitar a dupla cidadania italiana. No entanto, a lei estabelecia um prazo de 5 anos, até 20 de dezembro de 2005, para que esse pedido fosse feito. [3] Em 30 de dezembro de 2005 (dez dias após o fim do prazo), o decreto-lei 273/2005 (apelidado de “Milleproroghe”) estendeu esse prazo por mais cinco anos, até dezembro de 2010. [4]

Ao longo dos dez anos em que a lei n° 379/2000 esteve em vigor, milhares de descendentes de tiroleses italianos, triestinos, gorizianos e outros fizeram o pedido de dupla cidadania italiana, muito embora uma parcela considerável desses descendentes ainda esteja aguardando há anos o fim do seu processo. Seja como for, no ano de 2010 a lei não foi prorrogada, e desde então não é possível, para um descendente de sul-tiroleses, requisitar a dupla cidadania italiana.

INICIATIVAS RECENTES

No que diz respeito à cidadania italiana, em maio de 2013 um grupo de parlamentares italianos propôs um projeto de lei buscando anular os prazos para requerimento da cidadania italiana por parte dos descendentes de regiões que pertenceram ao Império Austríaco, como o Trentino-Südtirol. [5] No entanto, até hoje o projeto de lei não foi aprovado.

Ao mesmo tempo, iniciativas como a do senador italiano Claudio Micheloni, que propôs em fins do ano passado estabelecer um limite de gerações para aquisição da cidadania italiana por parte de descendentes [6], podem acabar enterrando de vez a possibilidade de obtenção da dupla cidadania italiana por parte da grande maioria dos descendentes de sul-tiroleses que se encontram no Brasil, e que não tenham feito o pedido no prazo estabelecido pela lei 379/2000.

Da parte austríaca, após a última eleição ganharam força iniciativas que visam conceder a dupla cidadania austríaca aos habitantes atuais da região Trentino-Südtirol. [7] Não está claro, porém, se essa dupla cidadania deverá ser oferecida somente àqueles de língua alemã e ladina (hipótese mais provável), ou se será ofertada também aos falantes de italiano. Seja como for, caso a iniciativa seja aprovada, dificilmente irá se aplicar aos descendentes de tiroleses que tenham emigrado ainda nos tempos do Império.

BIBLIOGRAFIA

[1] http://www.austlii.edu.au/au/other/dfat/treaties/1920/3.html – acesso em 30/05/2018
[2] http://www.normattiva.it/uri-res/N2Ls?urn:nir:stato:legge:1992-02-05;91 – acesso em 30/05/2018
[3] http://www.camera.it/parlam/leggi/00379l.htm – acesso em 30/05/2018
[4] https://www.ambientediritto.it/Legislazione/VARIE/2006/l_2006_n.51.htm – acesso em 30/05/2018
[5] https://www.insieme.com.br/pb/cidadania-italiana-por-direito-de-sangue-projeto-de-lei-traz-novo-alento-aos-descendentes-de-imigrantes-trentinos/ – acesso em 30/05/2018
[6] https://www.insieme.com.br/pb/senador-da-suica-anuncia-emenda-para-limitar-cidadania-italiana-segunda-geracao-e-subir-taxa-para-400-euros-e-furia-nas-redes-sociais/ – acesso em 30/05/2018
[7] https://www.zeit.de/politik/ausland/2017-12/doppelte-staatsbuergerschaft-oesterreich-suedtirol-angebot-italien-kritik – acesso em 30/05/2018

18 comentários em “Dupla cidadania”

  1. Boa noite, Caro Sr. Dalbosco e leitores deste meu HUMILDE comentário a qual agradeço.

    Sou Orlando Girardi, de Rodeio SC, descendente de Tiroleses Austríacos da emigração de 1875 (terceira geração do Brasil), da cidade de Fornace, Alta Valsugana, Tirol de lingua Italiana, após 1920 TRENTINO. Nossos NONOS diziam: EU EMIGREI DO TIROL, NA AUSTRIA, o que era verdade pura.
    Acredito que não podemos mudar o passado, sendo que deveriam ter o direito por descendência de sangue à CIDADANIA AUSTRIACA ou ITALIANA, a escolha de cada um (sabendo que no ato da emigração tiveram que abdicar da cidadania do império). Mas não interessa se o Império Autro-hungaro terminou, passando o SUD TIROL, atuais estados de TRENTINO E ALTO ÁDIGE a Itália etc….. isso aconteceu em 1920… 45 anos após a emigração de nossos BISAS… é claro e evidente que no meio da intensa floresta brasileira, no caso aqui de Rodeio SC, Rio Dos Cedros SC e, Nova Trento SC, não tomaram conhecimentos de LEI que dizia prazo de um ano para ser cidadão do novo país escolhido. Portanto essa BENDITA lei 379/2000, a qual foi instituída pelo Parlamento Italiano que foi FELIZ em promulgá-la (eu mesmo fui beneficiado com a cidadania Italiana em 2008 ao qual sou muito grato), deveria ser reeditada com validade DEFINITIVA para o livre arbítrio dos seus descendentes e todas as suas futuras gerações. Temos que pensar que como milhares solicitam a cidadania muitos a perdem por questões diversas com ÓBITO etc…. Dito isso, acredito que com todo o respeito, as Autoridades ITALIANAS e AUSTRÍACAS deveriam entrar em acordo para definir o que seria melhor para cada cidadão descendente dos Tiroleses da época da imigração até o acordo do pós-guerra. ORLANDO GIRARDI
    RODEIO SC – WATHS-47-996591701 e-mail orlando@ogcl.com.br

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    1. Bom dia, Orlando!

      Obrigado por seu comentário. Não é intenção do nosso Blog se imiscuir nas políticas de concessão de dupla cidadania neste ou naquele país europeu; nossa intenção com este post é tão somente informar os muitos descendentes que nos procuram solicitando informações a respeito do seu direito a dupla cidadania.

      Att,
      Misael Dalbosco

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      1. Sr. Misael Dalbosco, entendi e concordo com Vossa mensagem, se bem q tudo é politica, até as leis sobre cidadania. Mt obg pela oportunidade.

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  2. Muito interessante!

    Eu só faria uma observação á expressão “dialeto itálico”. O termo não é preciso. Existiram sim línguas itálicas (o osco, o umbro, o falisco etc.) e a única que acabou sobrevivendo foi o latim, de onde veio o italiano padrão e inúmeras formas de sistemas linguísticos popularmente chamadas “dialetos” porque não tinham expressão escrita suficiente para competir com línguas nacionais ou regionais.

    O conceito de “dialeto” é, portanto, voluntaria- ou involuntariamente depreciativo, pois uma expressão local, por exemplo as variadas formas de expressão falada no Tirol meridional, hoje denominado Trento, não são subsistemas do italiano tal como entendemos hoje (muito menos dialetos itálicos, o que seria algo cronologicamente falso), mas sistemas independentes diretamente vindos do latim (ainda que com influência de línguas majoritárias como o vêneto, o alemão austríaco ou italiano padrão, dependendo da época).

    Em suma, a meu ver, termos como “dialeto” ou “subsistema” são bastante usuais, mas pejorativos, e deveriam ser evitados.

    Por outro lado, sinto que o termo “língua” parece ser evitado, talvez por causa da pequena expressão escrita dessa variante (que, convenhamos, é questão de hábito e o site tiroleses.com.br poderia reverter essa situação).

    Eu questiono se não se deveria assumir que o sistema que envolve pronúncias, vocabulário e regras sintáticas utilizado no passado e ainda hoje na região em discussão não deve ser chamada de língua tirolesa (afinal, “língua” é um conceito político mais do que “sistema” é um conceito linguístico e uma língua também envolve também diversidade regional, etária, registros de fala etc. tal como vemos na região em questão) ou pelo menos se referir a essa riqueza expressiva apenas como “variantes tirolesas de origem latina”. Incomoda-me pensar que os falares do atual Trento sejam modificações do italiano, algo que não é verdadeiro nem cronologicamente, nem sob o ponto de vista linguístico (o italiano padrão faz parte da România Oriental, pois está abaixo da linha LaSpezia-Rimini e o atual Trento faz parte da România Ocidental, tal como o romanche, o ladino, os demais falares galo-italianos, o francês, o provençal e as línguas ibéricas).

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    1. Caro Prof. Viaro,

      muito obrigado pelo seu informativo comentário! Ao contrário do Everton e do senhor, eu não sou linguista, e por isso detalhes assim acabam escapando. 🙂 Obrigado pelas observações!

      Att,
      Misael Dalbosco

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  3. Prezada Carlota,

    Seus questionamentos deveriam ser direcionados ao governo italiano, e não a nós. Nosso objetivo com esse post foi simplesmente informar aos descendentes que nos procuram a respeito da situação atual das leis de dupla cidadania na Áustria e Itália.

    Att,
    Misael Dalbosco

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  4. Bom dia, Bianca!

    Não, essa lista do consulado é válida para os pedidos feitos até 2010. Você não conseguirá pedir a cidadania pelos trâmites normais (“fila” do consulado) por meio desse antepassado.

    Sua única opção é tentar encontrar algum outro antepassado que não era austríaco como seu antepassado Giordani, ou seja, proveniente do Vêneto, da Lombardia, ou outra região italiana.

    Att,
    Misael Dalbosco

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  5. Pela riqueza da história, pela cultura e por tudo mais que os Trentinos têm, eu creio que eles deveriam possuir passaporte próprio, deveriam ser tratados como cidadãos autônomos.

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  6. Boa tarde,
    Li somente hoje seu texto sobre a Cidadania e este tema é realmente MUITO complexo.
    Sou ITALIANA de imigrantes de Trento e acredito que seria de grande valia os leitores entenderem que a região, que era de disputa de território entre Itália e Áustria, possuía em suas terras tanto Italianos quanto Austríacos.
    A lei 379 a que o texto se refere acima, veio corrigir um erro, que é o da Itália reconhecer os seus, justamente pela dificuldade em distinguir quem são os italianos e quem são os austríacos da região.
    Possivelmente outros descendentes, que não italianos, se aproveitaram da oportunidade para obter uma nacionalidade europeia, mas não é realidade de que todos que conseguiram ser reconhecidos italianos pela lei, não sejam de fato italianos.
    Venho de uma família tradicional, onde a cultura e idioma passados pelos meus bisavós são sim, italianos, assim como de todos que conheço que obtiveram suas cidadanias.
    Acho de grande valia seu blog e admiro sua vontade de ajudar e os colegas que procuram entender suas histórias, e por isso é importante salientar que o Território a que nos referimos é rico em história e cultura justamente pela mistura de suas raças.
    Italianos e Austríacos que vivem ainda hoje suas culturas e histórias através da memória de seus antepassados.
    Espero ter contribuído esclarecendo que há sim italianos emigrantes da região espalhados hoje no mundo inteiro.
    Quanto a dupla cidadania Austríaca, sei que há sites do Consulado com informações sobre o assunto.
    Infelizmente aos Italianos da região, hoje não há mais como solicitar seu reconhecimento de cidadania pelo fato de que a lei já expirou, porém, são muitos os que lutam para que os descendentes tenham seus direitos reconhecidos.

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    1. O problema da cidadania austríaca para os imigrantes tiroleses dos anos de 1874/75/76… é que todos eles tiveram que assinar um termo renunciando à cidadania austríaca para eles mesmo e para todas as gerações futuras. O imperador Francisco José não deixou barata a emigração que ele não aceitava.

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      1. Prezado Sr. Agostini:

        Realmente, boa parte dos imigrantes austríacos teve de “renunciar” à cidadania, mas isso não passou de um subterfúgio das autoridades imperiais para impedir a imigração. A renúncia era escrita na parte de trás do passaporte, mas a realidade se demonstrou diversa: continuaram a receber auxílios consulares austríacos (quando haviam) e não deixaram de ser cidadãos, como se comprova vendo a documentação consular austríaca posterior a 1900 e anterior a 1918. Após a Primeira Guerra, eles realmente perderam seus direitos consulares por conta das cláusulas que impediram o retorno da monarquia, o exílio da família imperial, a proibição da cidadania aos “velhos austríacos” (regiões perdidas), quando da criação da República da Áustria.

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    2. Prezada Regiane:
      Acredito que você esteja fazendo uma confusão (muito comum, aliás) entre “nacionalidade” e “grupo linguístico”.

      1 – “acredito que seria de grande valia os leitores entenderem que a região, que era de disputa de território entre Itália e Áustria, possuía em suas terras tanto Italianos quanto Austríacos”

      A região nunca foi de “disputa” entre Áustria e Itália. O Tirol pertenceu à Áustria de 1363 a 1918 (por 555 anos) e a parte sul foi ocupada pelo Reino da Itália como conquista de guerra em 1918 e oficialmente anexada em 1920. Os soldados tiroleses, quer fossem de língua alemã, italiana ou ladina, combateram o exército italiano na Primeira Guerra. A passagem da parte meridional do Tirol (Trento e Bolzano) para o Reino da Itália não foi voluntária, tratou-se de uma ocupação – inclusive o termo “ocupação” (invasão) foi usado pelo próprio general italiano Diaz quando o exército italiano entrou em Trento e a notícia saiu nos jornais italianos e europeus.

      Se o que você entende por habitantes “italianos” e “austríacos” em Trento antes de 1918 tiver a ver com o idioma que falavam (italiano ou alemão), é preciso entender que idioma não é sinônimo de nacionalidade, ainda mais no Tirol que sempre foi trilíngue.

      Os brasileiros não são portugueses porque o idioma oficial do Brasil é o português. Os suíços do cantão Ticino falam italiano, mas não são cidadãos italianos, são suíços. Os habitantes da atual República da Áustria falam alemão mas não são cidadãos da Alemanha. Os argentinos, chilenos, uruguaios, mexicanos falam espanhol mas não são espanhóis.
      Contudo, o idioma comum nos aproxima e indica ligações culturais que se formaram nos séculos. Não é por menos que, em muitos aspectos culturais, o Tirol Italiano (Trento), chamado assim por causa do idioma, tem tantas semelhanças com as regiões vizinhas do Vêneto e da Lombardia, ao passo que também possui muitas semelhanças culturais com a parte de língua alemã do Tirol. Sua peculiaridade e beleza está exatamente nessa mistura.

      A Áustria de 100 anos atrás possuía 10 idiomas oficiais, entre eles o italiano (ensinado nas escolas austríacas desde meados de 1700, ou seja,d esde a criação da escola pública na Europa). A Áustria sempre respeitou os idiomas de seus cidadãos.

      2 – “A lei 379 a que o texto se refere acima, veio corrigir um erro, que é o da Itália reconhecer os seus, justamente pela dificuldade em distinguir quem são os italianos e quem são os austríacos da região”

      A resposta será direta: Não se trata disso. A lei 379 é uma lei especial que reconhece o direito à cidadania italiana para os descendentes de territórios austríacos que passaram a compor o Reino da Itália em 1920 e atualmente se encontram na República Italiana. A Itália não está reconhecendo “os seus”, mas deu durante 10 anos a oportunidade de descendentes de austríacos de obterem a cidadania italiana, haja vista que o território de seus antepassados passou para a Itália. Por isso a necessidade de uma lei especial, pois não há (do ponto de vista jurídico e histórico) considerar como italianos os imigrantes austríacos. Por isso os descendentes de tiroleses, gorizianos, friulanos e triestinos não se enquadraram na lei 91/92 que é aquela para descendentes de imigrantes italianos. Foi necessária uma lei especial, com prazo de validade.

      3 – “Possivelmente outros descendentes, que não italianos, se aproveitaram da oportunidade para obter uma nacionalidade europeia, mas não é realidade de que todos que conseguiram ser reconhecidos italianos pela lei, não sejam de fato italianos”

      Novamente, a confusão entre língua e nacionalidade. Os descendentes de tiroleses da região de Trento que possuem cidadania italiana serão sempre cidadãos italianos com ascendência austríaca. História não se muda e está bem documentada.

      4 – “Venho de uma família tradicional, onde a cultura e idioma passados pelos meus bisavós são sim, italianos, assim como de todos que conheço que obtiveram suas cidadanias”

      O Império da Áustria instituiu as escolas públicas na região de Trento, onde o idioma italiano era ensinado, 100 anos antes da Itália existir como país. Para entender melhor essa realidade, recomendamos: https://tiroleses.com.br/2017/08/29/perguntas-do-descendente-de-trentinos/

      Por favor, não confunda ser austríaco com falar alemão. A Áustria dos imigrantes “trentinos” não é a Áustria atual. Até 1918, a Áustria possuía 10 idiomas oficiais. Na atual República da Áustria aidna existem minorias falantes de esloveno e húngaro.
      O idioma “doméstico” dos imigrantes da parte sul do Tirol era o chamado “dialeto trentino” (dialèt tirolés) que, do ponto de vista linguístico, não é italiano, mas românico (de origem latina como o português, o vêneto, o francês etc). Obviamente, os tiroleses eram alfabetizados em italiano (língua de prestígio) nas escolas, mas eram cidadãos austríacos porque filhos, netos, bisnetos e tetranetos de cidadãos austríacos. O mesmo vale para os tiroleses de língua aleã, que aprendiam o Hochdeutsch (alemão standard) e falavam seus dialetos de tipo bávaro (Tirolerisch).

      5 – “Acho de grande valia seu blog (…) e por isso é importante salientar que o Território a que nos referimos é rico em história e cultura (…) Italianos e Austríacos que vivem ainda hoje suas culturas e histórias através da memória de seus antepassados”.

      Seria muito bom se a maioria dos descendentes de “trentinos” não encontrassem problemas em reconhecer que seus antepassados de língua italiana eram austríacos de língua italiana. Qual o problema nisso, não é mesmo? 😉

      6 – “Espero ter contribuído esclarecendo que há sim italianos emigrantes da região espalhados hoje no mundo inteiro”

      Os emigrantes da região de Trento que de lá saíram antes de 1918 eram austríacos de língua italiana, fato histórico indiscutível.

      7 – “Quanto a dupla cidadania Austríaca, sei que há sites do Consulado com informações sobre o assunto”.

      Diariamente, tanto a embaixada da Áustria como os consulados recebem perguntas de descendentes de tiroleses da região de Trento e a resposta é sempre a mesma: “A Áustria ficou impedida de conceder a cidadania para os “alt-Österreicher” (“velhos austríacos”) após 1918 (cláusula de guerra) e apenas a partir de 1970 houve uma alteração na lei para que os descendentes de imigrantes saídos após a constituição da República Austríaca pudessem obter a dupla cidadania.

      8 – “Infelizmente aos Italianos da região, hoje não há mais como solicitar seu reconhecimento de cidadania pelo fato de que a lei já expirou, porém, são muitos os que lutam para que os descendentes tenham seus direitos reconhecidos.”

      Não há mais como solicitar e o prazo expirou exatamente porque NÃO eram emigrantes italianos, mas austríacos. Daí a necessidade de uma lei especial (379/2000).

      Ainda: a atual República da Áustria é a tutora internacional da autonomia administrativa das províncias autônomas de Trento e Bolzano, que, juntamente com o estado austríaco do Tirol, formam a Euregio Tirol http://www.europaregion.info/it/default.asp e possuem um parlamento em conjunto e uma representação oficial na União Europeia.

      Agradecemos por seu comentário e esperamos ter sanado suas várias dúvidas sobre a história da região de seus antepassados.
      Att.

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  7. jamais pediria a cidadania italiana quando meu avo chegou ao Brasil a certidão dele estava descrita como Tirol Austria, e vai continuar assim em memoria a eles que sairam de suas terras para imigrar para o Brasil

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  8. Eu estou encantada com tudo isso. Sempre busquei me aprofundar na história do meu bisavô italiano, de Padova. Há alguns meses comecei a estudar a história das mulheres da família, até chegar a minha mãe. E que surpresa! Minha trisavó e o marido dela são austríacos! Até chegar ao site estava bem confusa com tudo isso e esse texto foi muito esclarecedor. Obrigada e parabéns!

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