Retorno às origens tirolesas

Bandeira Tirol Trento

O Blog Tiroleses no Brasil publica uma contribuição a nós enviada por Emanuel Lanzini Stobbe, descendente de imigrantes austríacos, alemães, suíços, italianos e portugueses. Emanuel é natural de Guarapuava, no Paraná, e mora atualmente na Alemanha, onde cursa seu doutorado na Martin-Luther-Universität Halle-Wittenberg e pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Apaixonado estudante de filosofia, línguas, história, música e genealogia, seu texto apresenta as impressões após ter visitado a terra de seus ancestrais tiroleses na região de Lavarone. Boa leitura!

“Se mais de nós valorizássemos a comida, e a alegria, e a canção acima do ouro acumulado, o mundo seria mais feliz” – disse J. R. R. Tolkien, pelas palavras do personagem Thorin Escudo-de-Carvalho, na ilustre obra The Hobbit, or There And Back Again (1937).

O significado por trás de tais palavras, podemos dizer, remete a um único conceito, tão nobre, tão caro, tão essencial à própria ideia de quem somos, de onde viemos, e para onde vamos: o conceito de lar, casa – no sentido germânico de Heimat, hoje em dia tão em voga com o uso do anglicismo home, o qual parece abrigar, em alguma medida, uma dificuldade nas traduções em línguas de origem românica – e que, ele próprio, possui um valor em si mesmo, que nenhum ouro do mundo pode substituir.

Não me refiro, claro, ao conceito no seu uso político, muitas vezes distorcido, mal utilizado, até mesmo desonrado em seu cerne, belíssimo e, antes de tudo, inocente. Não, penso aqui naquele sentimento que todos, e absolutamente todos nós temos, daquilo que nos é mais caro, mais familiar – o aconchego e o reconforto da certeza, por maior ou menor que seja, de quem somos. Digamos, pois, da nossa identidade. Ele está nas tradições que cultivamos; no modo de pensar, falar, criar, interpretar, que levamos conosco a cada momento das nossas vidas; na mescla de alívio, esperança e amor quando regressamos, por exemplo, de uma longa viagem, e chegamos, enfim, ao lugar que conhecemos, amamos, prezamos e zelamos. É o lugar, o contexto, onde pertencemos.

Tiroler 2
Camponeses tiroleses em uma pintura de Franz von Defregger

É o destino, penso – para usar o termo germânico, uma Bestimmung, mas talvez coubesse também falar de um Schicksal – de todo imigrante, e hoje, em especial, de todo descendente de imigrante, de pelo menos uma vez na sua vida voltar-se para o passado em busca de suas raízes. Raízes essas que, em maior ou menor medida, determinam também sua própria existência hoje, ainda que já integradas a outros povos, outras culturas. Falo aqui muito mais do contexto imigratório brasileiro, exatamente o contexto no qual nasci, cresci e, já adulto, considero me situar. Todos os descendentes conhecem, de algum modo, histórias de seu passado.

Do passado de seus pais, avós, bisavós – imigrantes, para todos os efeitos, de terras que por vezes parecem longínquas, antigas, até mesmo anacronicamente arcaicas à sua medida. Muitos descendentes de alemães ou sabem que suas origens não são “alemãs” no sentido contemporâneo de uma Bundesrepublik Deutschland, mas sim, que são descendentes de (alemães étnicos) prussianos, pomeranos, bávaros, cimbros, entre outros; ou pensam, muitos outros, que esses estereótipos seriam propícios, na maioria das vezes por desconhecimento, em especial pela falta de curiosidade por uma busca mais profunda do assunto. Isso também ocorre com descendentes de italianos, que pensam, por exemplo, que seus antepassados, muitas vezes de origem do Veneto ou da Lombardia, seriam grandíssimos adeptos das maravilhosas massas napolitanas, grandes cantores de famosas canções italianas, e assim continua a lista.

“Hibrido” que sou, sempre soube ser descendente de “alemães” e “italianos” – por mais que, desde muito cedo, tenha aprendido que esse era, sobretudo, um critério majoritariamente linguístico. Propiciamente, em todo caso, aprendi ambas as línguas – sem, contudo, ter um conhecimento mais aprofundado sobre “quais” alemães ou italianos meus antepassados eram.

Se, por um lado, sabia que meus ancestrais germânicos deveriam ser da Prússia, e outros da Suábia, sabia que meus itálicos eram do norte da Itália, alguns da Lombardia, mas em especial da “região de Trento”, por mais que muitas vezes já tivesse ouvido que era uma “região entre Itália e Áustria”. Por uma série de motivos, ao longo dos anos acabei me envolvendo mais com meu lado germânico – com língua, cultura, mentalidade. Mas, para minha surpresa, em alguma medida, há alguns anos me vi interessado também por esse meu lado “itálico” – e, bem nesse tempo, iniciei minhas pesquisas em genealogia.

Linguas imperio
Idiomas no Império Austro-húngaro.

Hoje, algum tempo depois, mas com consideravelmente mais conhecimento sobre esse lado de meus antepassados – que agora compreendo que eram, à época, da região do Tirol Italiano ou Welschtirol (por causa do critério linguístico) na histórica região do Tirol, dentro do multiétnico Império Austríaco (e depois no Império Austro-Húngaro), os quais hoje são chamados trentinos, da região praticamente homônima do Trentino, na Itália –, penso que não apenas tenho um carinho especial por eles, como devo muito do que sou justamente a eles.

Lavarone comune

E isso, especialmente, após ter visitado, em uma mistura de férias com pesquisa de hobby no Archivio Diocesano Tridentino, tanto a cidade de Trento, quando Lavarone (Lafraun, em alemão; e Lavròu, no dialeto cimbro), o vilarejo onde meus antepassados nasceram, viveram, casaram, morreram e, no caso dos mais recentes, de onde emigraram. Exatamente nessa ocasião consegui, por meio de pesquisas genealógicas, documentos de meus antepassados, originalmente Lancin ou Lanzin, até meu nona-avô, Giovanni Lanzin (Lancino, em latim, ao que tudo indica, com base nos registros, por causa do uso do caso ablativo de procedência da região homônima em Lavarone – que depois, com o uso do genitivo, passaram a ser chamados de Lanzini), de 1672 – a ponto de poder fazer, a partir de agora, um estudo mais profundo sobre os Lanzini de Lavarone.

 

Trento – durante muitos anos junto à Áustria – possui um antigo resplandecer, uma fascinante aura de História sempre presente que surpreende a cada construção, a cada contraste entre a beleza arquitetônica de diferentes épocas e a magnificência eterna das montanhas, sempre a surgir no horizonte.

Trento cidadeDe certo que a cidade representa não apenas a mescla, mas a própria intersecção de pelo menos dois mundos históricos – o germânico e o itálico –, a qual confere à cidade uma alma nobre; antiga, sim, mas não anacrônica. Dos diversos estilos arquitetônicos, destacam-se claramente um romano, de fato o mais antigo; um medieval ou mesmo um pouco posterior, como, por exemplo, da época do tão conhecido Concílio de Trento; e ainda outro, austríaco, no sentido de ter sido por muito tempo uma cidade do Império (não por acaso a cidade se assemelha a Bolzano/Bozen e Innsbruck em certos aspectos). Essa diversidade na arquitetura convive, em harmonia, particularmente se a contemplamos partindo da própria aura história – faz da cidade simplesmente belíssima.

De fato, de tão fotogênica, parece praticamente impossível fazer uma fotografia que não seja, ela própria, digna de um belo cartão postal.Fonte Netuno Trento O Duomo de Trento, penso, é um caso ainda mais especial – que forma, junto com a Fontana di Nettuno e a residência dos príncipes bispos (principi-vescovi, Fürstbischöfe) o famoso panorama da cidade. Belíssima que é Trento, ainda se pode ouvir nas ruas as pessoas falando em dialeto, ou mesmo em uma mistura entre dialeto e italiano. Dialeto esse que, aliás, parece muito familiar mesmo a um descendente. E essa, imagino, é a riqueza do próprio dialeto – por que não? Por mais que se tenha um modo mais formal, mais padronizado de se falar a língua, o próprio dialeto expressa a identidade do povo que, em meio à diversidade, ainda busca afirmar sua identidade – realmente uma pena, em especial para as gerações futuras, que elas próprias não exatamente se interessem pela conservação desse aspecto, mas penso que esse seja um fenômeno global.

Seria possível que algum dos meus antepassados já tenha visitado a cidade de Trento, propriamente dita? Separada cerca de 30 quilômetros, Lavarone não parece, ao menos nesse aspecto absoluto, demasiadamente longe. Ainda na cidade de Trento, se pode ver a Vigolana – montanha atrás da qual se localiza Lavarone (e que, vista de lá, se chama Becco di Filadonna) – por mais que a própria esteja mesmo, em alguma medida, em cima dela: a altitude do vilarejo varia, mas, em média, é de cerca de mil e cem metros.

Trento

A viagem, de ônibus, é cheia de desvios, por conta de se estar subindo a própria montanha para alcançar primeiro a comunidade de Folgaria (Vielgereuth, em alemão; Folgrait, no dialeto cimbro), e depois Lavarone – que, fatidicamente, não é propriamente dita uma localidade, mas a comunidade, no sentido do coletivo de frazioni que compõem o altopiano di Lavarone. Historicamente, muitos dos habitantes de Lavarone fazem parte de uma minoria étnico-linguística de origem germânica, mais especificamente bávara, migrada por volta do século XII e que conservou, em maior ou menor medida, a língua (o slambròt, que hoje só é falado na localidade vizinha de Luserna/Lusern) e os costumes ao longo dos séculos – os muitas vezes chamados “cimbros”. É o caso de muitos sobrenomes da minha árvore genealógica, que soam italianos, mas eram originalmente germânicos: Gasperi [de Gasper ou Kaspar], Giongo [de Jung], Caneppele [de Knapp ou Knappel], entre outros.

Se Trento fascina pelo esplendor de séculos de história, Lavarone encanta pelo aspecto, ao menos no caso de um descendente como eu, mais pessoal, mas também por ser um paraíso bucólico, que não só possui a atmosfera de uma localidade interior de montanha, como também faz parte da própria alma da montanha e da altitude na qual se encontra. Por todos os lados vemos montanhas, bosques, árvores centenárias, e o canto dos pássaros – talvez seria este o mesmo canto que meus antepassados ouviam quando iam, por exemplo, cedo em um domingo à missa na Cappella di Santa Maria Assunta?

igreja Lavarone

Seria esse o mesmo céu, seriam as mesmas estrelas, o mesmo encanto de uma paisagem tão pacífica, tão serena; do mesmo lago, das mesmas igrejas, pequenas, mas encantadoras, de um lugar do qual, agora sei, a despedida deve ter sido deveras dolorosa. Tantas alegrias, tantas tristezas, mas tanta emoção, tanto amor, tanta vida… e tanto pertencimento, de um lar, tão querido, que há quase 140 anos (que serão completos em junho) teve de ser deixado na memória. Mas que agora permite uma particular espécie de Heimkehr.

Lavarone

Lavarone não é apenas belíssima pela localidade, mas também pelas pessoas, pelos parentes distantes, pela vida que há ali – é exatamente nesse conjunto que é belo o pensamento de que, depois de tanto tempo, aqueles que partiram finalmente podem, na forma de seus descendentes, encontrar o caminho da volta.

E é justamente nesse contexto que se pode falar, talvez não apenas de um lar no sentido de um Heimat, mas sim no sentido de um “Ur-Heimat” (enquanto jogo de palavras, o que há acima de um Heimat, não no sentido linguístico mais específico) – e ainda no sentimento mais nobre e sublime de pertencimento que um descendente pode ter, que me parece extremamente consonante com a citação de Tolkien com a qual iniciei o texto.

Emanuel Lanzini Stobbe

14 comentários em “Retorno às origens tirolesas”

    1. Muito obrigado, Mauro. Teus antepassados eram tiroleses de Lavarone também? Digo, já que Lenzi é um sobrenome presente na região?

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  1. Grande Emanuel!
    Belo texto. Compartilho dos mesmos sentimentos em relação a minha terra de origem. Bom demais retornar e ver o lugar pela primeira vez, reviver (se é que isso pode ser dito) o passado. Contemplar a beleza da natureza e ver os sinais deixados por eles no território… Teu texto me leva a pensar nos nossos velhos e em como eram absolutamente conectados com o território e com a natureza…
    Bela pesquisa!
    Abraços

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    1. Muito obrigado, Gustavo! Com certeza a certeza, esse “Heimkehr”, o retorno ao lar (ancestral), é uma experiência única! Grande abraço e obrigado de novo pela troca de ideias!

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  2. Meu Bisavô Alfredo Baptista Sasso é desta região, segundo o que li Sasso viria de saxão…(não sei o termo em alemão)….mas se puder me instruir ficaria grato.

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  3. Fui tocado por este belo texto. Obrigado, Emanuel, por compartilhar suas impressões de nossa terra de origem. É muito satisfatório podermos recompor nossa historia e praticamente toca-la através de tuas palavras. Parabéns, Emanuel. Grande abraço, Dagmar Lanzini Pereira

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  4. Emocionada com o texto, meus bisavôs emigraram de Borgo Valsugana, Trento, um trisavô de Tirol, quando pensava serem todos italianos, me deparei com uma baita confusão Dei início a minha busca recentemente estou encantada com minha pesquisa, minha próxima viagem com certeza será para aquela região, e sei certeza que me emocionarei tanto quanto você. Dalmaso e Rigo, são os sobrenomes teria algo sobre as origens? Riquíssima pesquisa, parabéns!

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    1. Olá, Andreia, muito obrigado pelo comentário! Fico feliz em saber que mais descendentes de tiroleses estão buscando retomar contato com suas raízes ancestrais. E imagino que esse sentimento de retorno ao lar dos antepassados é uma experiência única e essencial para nós! Em todo caso, infelizmente não tenho informações de primeira mão sobre famílias de sobrenome Dalmaso e Rigo, porque essa minha pesquisa se limita mais a Lavarone (digo, apesar de a Valsugana ser praticamente ali do lado…). Posso estar “chovendo no molhado”, mas te recomendaria dar uma olhada primeiro no site “Nati in Trentino”, que é a ferramente disponibilizada on-line para pesquisas genealógicas do Tirol Italiano (região de Trento) entre 1815 e 1923. No começo das minhas pesquisas, fui primeiro lá, e apenas depois a Trento para pesquisar no “Archivio Diocesano Tridentino”. Desejo muito sucesso nas pesquisas!

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    1. Olá, Patrícia! Muito interessante! Sabe quando teus antepassados emigraram ao Brasil? E para que região? Até onde me lembro no momento, a única Gasperi que encontrei na região dos meus antepassados no Rio Grande era a minha trisavó Ermenegilda mesmo. Então, fico curioso para saber para onde mais vieram outros Gasperi!

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      1. Sou primo de Patrícia, cujo comentário ficou registrado acima. Nosso bisavô, nascido em Lavarone, filho de uma Garsperi, emigrou para o Brasil cerca de 1890, para trabalhar na ferrovia Santos a Jundiaí. Teria se transferido para cá acompanhado por um irmão, cujo destino desconhecemos, mas que poderia ter ido para o RGS.
        Curiosamente, esse bisavô tornou-se um apátrida, por força de acordos e de leis. Não é considerado austríaco nem muito menos italiano, para fins de reconhecimento de nacionalidade.
        Excelente e muito tocante o seu texto. Parabéns!

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