Trento e tarantela? Mistura indigesta…

polenta tarantella

Nas redes sociais circulam iniciativas “culturais” de comunidades e associações que pretendem “resgatar” as tradições da região de Trento. Porém, boa parte delas demonstra confusão e uma visão estereotipada que muito pouco ou nada têm a ver com a cultura da região trentina do Tirol.

Aviso aos leitores: este texto trata exclusivamente da cultura da região de Trento, ou seja, da área de língua italiana do Tirol. Dito isso, prosseguimos:

Quem não gosta de uma animada festa cultural, com boa comida típica e músicas que nos remetem à região dos antepassados? Nem todas as pessoas gostam disso, mas com certeza os leitores deste Blog e é a eles que dedicamos este texto.

Nem sempre uma iniciativa cultural significa promover cultura. Pode parecer absurdo, mas é algo que acontece com certa frequência e nós do Blog Tiroleses no Brasil temos observado essa contradição em festas “trentinas” de diversas cidades brasileiras.

“Ora, eu admiro muito os oriundi que se esforçam em manter vivas as próprias raízes, mas devo igualmente alertar que certas atitudes fogem um pouco dessas raízes que eles pretendem “redescobrir” (…) vestidos com roupas imitando as do Tirol, dançando nada menos que uma tarantella com chapéu de montanhês ou tirolês na cabeça e cantando canções como O sole mio, Torna a Surriento, Santa Lucia, etc., que são de origem napolitana. (…) Misturar as duas tradições é o equivalente a misturar cantos e danças da caatinga, as roupas dos cangaceiros do Nordeste brasileiro com os cantos, as roupas e danças dos gaúchos. (…) É preciso alertar que às vezes esse tipo de boa vontade pode produzir efeitos negativos e contrários e no lugar de difundir cultura, se corre o risco de fazer uma ‘anti-cultura’. A esses aspectos pouco ortodoxos se soma a imagem negativa que se forma”.

(PASCOLI, 2002).

Mistificações e macarronices…

“A memória se faz de lembranças, mas também de esquecimentos”. E acrescentaríamos que se faz também a partir de releituras. A ideia de italianidade entre muitos brasileiros, descendentes ou não de imigrantes, é permeada de estereótipos e contradições. O mesmo se dirá da ideia que se faz dos “alemães”. O que dizer, então, dos tiroleses de língua italiana que eram imigrantes austríacos, falantes do italiano e com uma cultura que “mescla” aspectos germânicos e latinos?

Ao invés de valorizar a polenta con cràuti (polenta com chucrute), prato trentino por excelência e que, de modo objetivo, resume qual é a cultura mista dessa região alpina, vemos eventos que, sem o menor constrangimento, misturam tradições ou – o que é pior – apresentam fantasias e invenções esdrúxulas como se fossem tradições e folclore dos imigrantes da região de Trento. Ou seja: e a indigesta polenta com tarantela com toques de mau gosto e boas pitadas de estereótipos.

Não é necessário grande esforço para saber que a tarantela (it. tarantella) não é um ritmo típico dos Alpes, mas uma dança tradicional de regiões meridionais da Itália como Campânia, Púlia ou Basilicata. Obviamente, não se critica aqui a tarantela, que é uma expressão cultural e tradicional do Sul da Itália, mas a incoerência de quem confunde as tradições e promove tarantela como sendo cultura “trentina”. O contrário também é válido: no Sul da Itália ninguém sabe cantar “La bella polenta” ou “Ho girato l’Italia e il Tirol”. Essas misturas macarrônicas, muito comuns em telenovelas, não condizem com a realidade cultural e, de certa forma, desrespeitam a história desses povos. Seria como ir a um Centro de Tradições Gaúchas (CTG) e e pedir ao grupo de danças para que apresente números de xaxado, baião e forró. Ou, ir à Feira de Caruaru e, ao invés de querer ver uma banda de pífanos, procurar alguém que dance a chula gaúcha.

Acho que já ficou claro, não é mesmo?

Todo resgate pressupõe perda. Ora, não se resgataria algo se já não estivesse perdido. No entanto, as (re)construções da identidade a partir de leituras muitas vezes superficiais ou direcionadas (como no caso de entidades “trentinas” atuantes no Brasil) podem resultar em nítidos “esquecimentos” (nem sempre involuntários), aos quais se juntam visões distorcidas e estereotipadas.

Em primeiro lugar, é preciso ter em mente algumas coisas:

  1. Pouquíssimos imigrantes trouxeram consigo trajes típicos, pois estes eram e são usados em dias de festa. Muitos imigrantes viviam em condições de pobreza na terra natal e mesmo lá não dispunham de meios para adquirir esses trajes. Quando imigravam, geralmente deixavam essas indumentárias como herança para os parentes que ficavam. Mesmo assim, alguns trouxeram consigo trajes, mas estes geralmente não sobreviveram ao tempo.
  2. Quando se pretende confeccionar um traje típico para uma festa ou grupo folclórico, é de bom senso que uma pesquisa seja feita anteriormente. Hoje em dia, com todas as possibilidades que a Internet nos proporciona, é praticamente impossível não encontrar informações sobre os trajes tradicionais de determinada região da Europa. Não é preciso muita pesquisa para saber que os trajes típicos tiroleses na região de Trento seguem os padrões encontrados em todo o Tirol histórico. Sobre os trajes do Tirol Italiano, ler aqui.
  3. O que se diz acima sobre os trajes pode ser aplicado também às músicas típicas da região de Trento. E vale lembrar que em muitas comunidades os descendentes mais velhos se recordam das canções trazidas pelos imigrantes. Há, ainda, comunidades que possuem corais e grupos musicais. Para conhecer a musicalidade tradicional de Trento, clicar aqui.

Obviamente, não se critica a boa vontade dos organizadores desses eventos, mas quando o fazer se torna mais importante do que o como fazer, os “achismos” dão espaço para os  estereótipos e o que se pretendia apresentar resulta em algo estranho e sem originalidade. O que se discute aqui são os reais motivos pelos quais não há um mínimo de preocupação com a história dos povos e com suas tradições.

Vejamos alguns exemplos de trajes e música tradicional da região tirolesa.

1 – No Tirol do Norte (Tirol austríaco):

2 – Em Villnössertal/Dolomitas, na Província de Bolzano/Bozen (Tirol Meridional):

No Vale de Primiero, na Província de Trento (Tirol Italiano):

Aos leitores, a conclusão.

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11 comentários em “Trento e tarantela? Mistura indigesta…”

  1. Everton, parabéns pela divulgação deste tema. É relativamente compreensível que os imigrantes tenham absorvido influencias diversas pela mistura e miscigenação de diferentes origens que aqui se processou. Até mesmo o maior numero de imigrantes de uma e outra região de origem acaba exercendo influência. Assim é extremamente importante que estas diferenças regionais sejam claramente explicitadas para que os descendentes possam entende-las.

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  2. Muito interessante. De fato, a maioria dos “resgates”, de viés folclórico, costuma ter características (que oscilam entre o inócuo e o deletério), a saber, anacronismo, imprecisão geográfica e aspectos caricaturais, as quais só refletem falta de pesquisa (entre os remanescentes mais idosos e na documentação histórica). Este blog é louvável por ter a virtude de preocupar-se com esses detalhes.

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  3. Ja procurei por inumeros lugares e nada encontrei. Meus bisavos Dionysio Fachini (filho de Antonio Fachini e Anna Fachini) casado com Maria Fachini (filha de Giacomo Perin e Lucia Perin), Austriacos, sera que tem como me ajudar a encontrar alguma informação… muito obrigada

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    1. Prezada Sra. Fachini:
      o sobrenome “Facchini/Facchin” é bastante comum na Província de Trento (Tirol Italiano). De onde exatamente, só é possível saber com documentação (certidões de nascimento, casamento ou óbito) dos antepassados mais velhos.
      Att.

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  4. Fico muito feliz e orgulhoso de ver textos como este com tão rico e também polêmico assunto! Essa questão de tarantella vai além do Trento,
    Nós venetos sofremos com o mesmo problema, as entidades precisam compreender que temos sim que resgatar as tradições dos antenati, porém deve se pesquisar e fazer as coisas de forma correta e ordeira! O que vemos hoje são diversas associações e círculos representativos de uma determinada região que não usam nem seus trajes típicos locais e piorou suas danças ou tradições populares, fazem fantasias com brilhos e inventam ainda as Tarantellas, que nem essas conseguem executar corretamente! É complicado tudo isso, mas a maioria não tem a mínima vontade e interesse de fazer o correto e repassam uma falsa imagem dos verdadeiros costumes! Parabéns pela reportagem e irei divulgar entre as entidades venetas e amigas para que reflitam!!

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    1. Boa tarde, Patrick!

      Sim, o problema não é exclusivo dos tiroleses, e também não somente dos vênetos: entre outras comunidades de descendentes também há muita desinformação e estereótipos. Basta ver que a cidade de Blumenau, fundada por uma grande maioria de imigrantes prussianos protestantes (luteranos), ficou nacionalmente famosa devido à Oktoberfest, uma festa inventada por um tirolês e que acontece na Baviera, uma região tradicionalmente católica, totalmente diferente da antiga Prússia. Um prussiano do século XIX vestindo calças de couro (típicas da Baviera, Áustria e Tirol) seria algo impensável.

      Infelizmente, muitas vezes a preocupação maior é “vender” estereótipos para faturar uns trocados, ao invés de realmente resgatar o que foi a cultura trazida pelos imigrantes.

      Abraços,
      Misael Dalbosco

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  5. O autor trata de realidade é nosso colono vive uma fantasia mítica da Velha Senhora. Não é obrigação nossa defender valores culturais da Itália. Os colonos eram tão pobres e com pouca instrução, o que construíram é um verdadeiro milagre, deixem que construam uma Fantasia da terra de origem,

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    1. Prezado Walmor,

      seu comentário condescendente demonstra desprezo por aqueles que você julga defender. Nós acreditamos que “nossos colonos” são perfeitamente capazes de entenderem suas verdadeiras raízes, até porque são eles que, mais do que ninguém, as vivem e mantêm no dia-a-dia. Por outro lado, as macarronices mencionadas pelo texto frequentemente são organizadas por gente com instrução e acesso a informação, que não se interessa em buscar, ou, pior ainda, escolhe ignorar, a verdadeira cultura dos ancestrais tiroleses (que, vale mencionar, não eram ignorantes com “pouca instrução”, graças a Maria Teresa da Áustria).

      Att,
      Misael Dalbosco

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  6. Bom dia Sra. Juceli, os Fachini vieram da Comune chamada Gigolo Vataro em Trento. Procure na Paróquia desta cidade os originais q acredito conste os dados de teu oriundo. etccc…
    Desta cidade é TB Madre Paulina.

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