O trauma da divisão do Tirol

A divisão do Tirol após 1919.

Por diversas vezes, neste Blog, fizemos referência à traumática divisão do antigo Condado do Tirol determinada pelo Tratado de Saint-Germain, assinado após a Primeira Guerra Mundial, em 1919.

Prof. Dr. Misael Dalbosco (Nova Trento, SC)

Por determinação do Tratado, o Condado foi geograficamente dividido em três regiões, divisão que perdura até os dias de hoje: Tirol do Norte (al. Nordtirol, it.  Nordtirolo), Tirol do Leste (al. Osttirol,  it. Tirolo dell’Est) e Tirol do Sul (al. Südtirol, it. Sudtirolo).

Os dois primeiros, inteiramente de língua alemã, passaram a fazer parte da recém-formada República da Áustria Alemã (al. Republik Deutschösterreich), que reuniu boa parte dos territórios de língua alemã do Império Austríaco, que deixava de existir. O Tirol do Sul, com seus habitantes de língua alemã, italiana e ladina, passou para o então Reino da Itália.

A divisão já estava prevista no Pacto de Londres, acordo secreto assinado em 26/04/1915 entre os países da Tríplice Entente (Grã-Bretanha, França e Rússia) e a Itália para que esta entrasse em guerra com os impérios centrais – Alemanha e Áustria-Hungria. Ao assinar o tratado, a Itália traiu o acordo que mantinha com esses dois países, com os quais formava, desde 1882, a chamada Tríplice Aliança.

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Cartão-postal comemorando a Tríplice Aliança

Especificamente, o artigo 4º do Pacto de Londres previa que, em caso de vitória, a Itália receberia, entre outros territórios, o Tirol do Sul até o passo do Brennero. O interesse da Itália no território era garantir uma “fronteira natural” com a Áustria, uma vez que uma cerrada cadeia de montanhas divide as porções Norte e Sul do Tirol.

Assim sendo, a divisão do Tirol foi acordada em termos militares, desrespeitando a vontade do povo tirolês, que no curso das sangrentas batalhas da Primeira Guerra, lutou bravamente – e com sucesso – para conservar a unidade da própria terra. No entanto, tendo o Império Austríaco saído da guerra derrotado, o antigo Condado do Tirol se viu dividido entre dois países.

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Soldados austríacos de Trento e arredores durante a Primeira Guerra Mundial

Um suposto episódio pouco conhecido, e que veio à luz alguns anos atrás, é relevante para entendermos o quanto essa divisão foi considerada traumática para os tiroleses em 1919. Foi retirado das memórias do capitão Pietro Stoppani, do 5º regimento Alpini. O relato foi publicado no livro “1918-1920. Do Piave a Innsbruck. A ocupação do Exército Italiano no Tirol”, publicado em 2007 pelo escritor Corrado Pasquali, membro da Sociedade Histórica da Grande Guerra, de Bolzano. Escreveu o capitão Stoppani:

Por estar acostumado com tudo o que fosse alemão ou austríaco, parti para Innsbruck. Apresentei-me, naturalmente no meu uniforme de capitão do Quinto Alpini, ao general comandante.

Era um general “à antiga”: fazia pensar nas velhas meias com a faixa vermelha. Era um soldado em todos os aspectos, um pouco áspero, mas evidentemente íntegro e bom. De fato, não demorou a ficar a vontade: “Caro capitão, o senhor caiu do céu. Encontro-me em um embaraço grave: um grupo de deputados da Dieta tirolesa demanda uma audiência comigo amanhã de manhã. Exigem o mais absoluto segredo para fazer uma comunicação da mais alta importância. Teria preferido recusar, mas não me pareceu possível. Querem falar somente comigo, mas lhe apresentarei como meu ajudante.” Na manhã seguinte, perto das dez, estava pontualmente junto do meu general. O suboficial de serviço apresentou então um grupo de cinco ou seis pessoas. “Excelência, o senhor vê aqui presentes, sem exceções, os representantes de todos os partidos da Dieta tirolesa”. E aqui o porta-voz, provavelmente representante do partido mais numeroso, que imagino que fosse o social-cristão, apresentou um por um os diversos membros da delegação, explicando a que partido da Dieta cada um deles pertencia, para então concluir: “Excelência, o senhor tem diante de si todos os representantes do povo tirolês, e portanto é em nome da Dieta e do povo do Tirol que nós vimos fazer uma proposta, que lhe rogamos seja submetida a Sua Majestade, o Rei da Itália. Essa proposta não agradaria a Viena, que certamente, se a conhecesse, nos acusaria de deserção ou pior. E por isso nós lhe pedimos segredo e preferimos que nada seja registrado por escrito.” O general lhes assegurou, e logo após o porta-voz retomou o discurso: “Eis agora, Excelência, a nossa proposta ou, melhor dizendo, nossa livre e espontânea oferta”. Pausa de efeito. Em seguida: “O Tratado de Saint-Germain dá à Itália uma parte do Tirol. Pois bem, em nome do povo tirolês, nós vimos livremente e espontaneamente oferecer a Sua Majestade, o Rei da Itália, não somente uma parte, mas sim todo o Tirol nas suas antigas e tradicionais fronteiras.” O meu general emitiu alguns grunhidos indistinguíveis que provavelmente significavam algumas reservas, mas o porta-voz não lhe deu tempo e em seguida lhe disse:

“Nós compreendemos perfeitamente que esta oferta surpreenda e seja incompreensível para Vossa Excelência. É portanto necessário explicar as razões. Vocês nos consideram austríacos da mesma espécie dos vienenses e, no sentido do nosso secular pertencimento à monarquia austro-húngara, isso é exato. Mas só nesse sentido. Na verdade, por antigas razões históricas e particulares, antes de sermos austríacos, nós somos tiroleses. Nós combatemos fielmente e valorosamente nesta terrível guerra pelo nosso Imperador e grande foi nossa consternação quando da ruína dessa potência que por séculos amamos e servimos. Mas a mais grave ferida ao nosso coração nos foi infligida por um tratado de paz que determina o desmembramento da nossa verdadeira e mais próxima pátria, o Tirol, este Tirol que sempre constituiu, ainda que no âmbito da monarquia e sob a égide da coroa dos Habsburgo, uma entidade distinta, com uma própria personalidade, com uma própria autonomia, que o poder central sempre respeitou. Essa é a verdadeira terra dos nossos pais, a terra da qual é nosso supremo intento conservar a fisionomia e a integridade. Se o senhor fosse, Excelência, familiar à nossa História, o senhor certamente compreenderia o quão profunda é nossa dor de ver desmembrada, cortada em pedaços, a nossa antiga e verdadeira pátria. Desde tempos imemoriais os tiroleses sempre foram homens livres. Há séculos nossa Dieta era composta não somente de nobres, de prelados, de grandes proprietários. Junto a eles sentavam-se os simples montanheses dos nossos vales, que participavam inclusive do exercício da Justiça. Por volta da metade do século XIV, os Habsburgo se tornaram nossos soberanos. Nosso senhor direto era sempre um membro daquela histórica Casa, até que, no século XVII, o Imperador em pessoa foi proclamado cônsul soberano do Tirol. Por quase seis séculos vivemos livres e fiéis aos Habsburgo, não tanto aos Habsburgo na qualidade de nossos soberanos diretos, que se chamassem, com o passar do tempo, cônsules, duques ou condes do Tirol. Hoje a antiga coroa jaz sob o pó. O nosso povo, por tradição secular, é de espírito monárquico: ama concentrar a própria fidelidade na pessoa de um soberano, desde que respeite a nossa personalidade especificamente tirolesa. A Casa de Savoia é também antiga e ilustre como aquela que longamente amamos e servimos. Eis porque, em uma tentativa suprema de salvar a integridade do nosso Tirol, o nosso pensamento se volta a Sua Majestade, o Rei da Itália, certos de que ele saberia respeitar aquela autonomia de que sempre pudemos nos valer. Note que essa autonomia não diz respeito a nada que não seja nossa vida regional, a nossa Dieta, a nossa Justiça, os nossos costumes, a nossa cultura. Ela jamais se entrecruzou em modo algum o exercício daquelas funções que necessariamente devem permanecer nas mãos do poder central, tais quais o exército, a política externa, entre outros. Não quero alongar-me. Excelência. Se Sua Majestade se dignar a aceitar essa espontânea oferta do Tirol, não tenho dúvidas que os detalhes seriam facilmente ajustados. Excelência, é esta a mensagem, por ora secreta, que nós lhe pregamos de transmitir a Sua Majestade, o Rei da Itália.” Aqui, uma pausa. Depois – parece que ainda o ouço: “E por favor assegure a Sua Majestade que o Rei da Itália não terá soldados mais fiéis que os Tiroler Alpenjäger”.

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Carlos I, último imperador austríaco, coloca um prego na águia de madeira que se localizava em Brixen/Bressanone (atual província de Bolzano). A cerimônia simbolizava a união do Tirol com o Império Austríaco. A águia foi destruída após 1918.

Ao que parece, somente as memórias de Pietro Stoppani dão testemunho do que teria ocorrido, portanto é impossível saber se o fato aconteceu.  Porém, supondo que a oferta realmente tenha existido, façamos uma pausa para refletir sobre o seu significado: haviam se passado mais de três anos de duras batalhas entre italianos e tiroleses, nas quais estes últimos lutaram bravamente para defender as fronteiras da própria terra, ao custo de milhares de mortos – incluindo muitos soldados voluntários, com menos de 18 anos e mais de 45. E então, após ter sido determinado pelo Tratado de Saint Germain que metade do Tirol passaria para a Itália, a Dieta tirolês oferece ao “inimigo” não somente metade do Tirol,  mas sim todo o Condado.

O porta-voz da delegação diz estar fazendo uma oferta “livre e espontânea”; mas essa oferta soa mais como uma tentativa desesperada dos tiroleses de assegurar a integridade da própria terra, nas suas fronteiras históricas. Eis aí a magnitude do trauma da divisão do Tirol.

Referências

Tirolo unito sotto il simbolo dei Savoia. Il Trentino. Trento, 23 dez 2007.

9 comentários em “O trauma da divisão do Tirol”

  1. Caro Prof. Altmayer,

    suas pesquisas sao muito interessantes. Aqui na Austria, com o Partido de Direita (FPÖ) querendo a todo custo um lugar como chefe de Estado, uma das propostas do “louco” candidato é que ele tentaria “resgatar” o Südtirol para território austriaco outra vez! O candidato Nobert Hofer tem uma retórica excelente e convenceu a quase todos na Austria sobre as suas propostas de governo.

    No documentário Österreich II pela ORF, pontos como os que citastes no teu artigo também sao tratados, mas de forma triste. Afinal para os austríacos a derrota e o fracasso de suas tropas e ainda a diminuicao do territorio austriaco, foi a gota d”agua.

    Atenciosamente,

    Priscila Damacena Glaser

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    1. Prezada Priscila:
      No ano de 2014, uma pesquisa feita pelo “Südtiroler Heimatbund” (Federação patriótica sul-tirolesa) na Áustria demonstrou que 89% dos cidadãos austríacos são favoráveis ao retorno do Tirol do Sul ao território austríaco por meio de um referendo popular. Entre 2012 e 2013, milhares de cidadãos das províncias autônomas de Bolzano e Trento assinaram uma petição pública encaminhada ao Congresso de Viena na quel afirmavam sua vontade de obterem a cidadania austríaca.
      Independentemente das disputas eleitorais austríacas de 2016, boa parte (ou, no mínimo, uma parte significativa) da população sul-tirolesa (das províncias de Bozen/Bolzano e Trento/Trient) é favorável ao voto democrático por meio de um referendo para que seja decidido se a região permanece com a República Italiana, retorna à Áustria ou se torna independente.
      Não é intuito deste Blog dizer quais são os melhores ou piores candidatos nas disputas eleitorais austríacas, italianas ou indonésias. Nosso intuito é mostrar – e demonstrar – que a história tirolesa tem como triste capítulo a divisão territorial com consequências pesadas até os dias atuais. Em se tratando de direito democrático por meio de referendo, retornar à Áustria, permanecer na Itália ou se tornar independente de Roma e Viena são possibilidades concretas que dependem, contudo, de iniciativas da população local.
      Atenciosamente,
      Everton Altmayer

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      1. Caro Prof. Atlmayer,

        concordo com a sua opniao. Me desculpe se me expressei mal, mas nao quiz tocar no ponto político, pois sempre é polemico.
        Que bom que voce me exclareceu este ponto, de que há uma intencao deste Italianos de se reunificarem a Áustria, ou de se tornarem autonomos. Muito interessante!! Obrigada pela informacao!

        Atenciosamente,

        Priscila Damacena Glaser

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  2. Olá, Priscila,
    Conversando sobre o assunto, que é complexo, sempre encontramos mais informações importantes para as pesquisas. Na verdade, a região de Trento e Bozen/Bolzano já é autônoma no contexto da República Italiana desde a década de 1960. No entanto, ao conhecer melhor a realidade política local, você perceberá que a autonomia, muitas vezes, não passa de um “acordo no papel” por causa de constantes tentativas do governo de Roma para que a autonomia seja diminuída. A República da Áustria é, desde a década de 1960, tutora internacional da autonomia da Região Autônoma Trentino-Südtirol e das províncias autônomas de Trento e Bolzano.
    Todavia, um aspecto importantíssimo que nos faz entender melhor qual é o grau de respeito da história local por parte do governo italiano é a questão toponomástica. Basta ver que, enquanto a região norte do Tirol (pertencente à Áustria) mantém seu nome secular, a região sul foi por diversas vezes rebatizada, sempre no intuito de “apagar” o passado austríaco (secular, haja vista que o Tirol esteve unido à Áustria de 1363 a 1918).
    Os nomes italianizados e/ou modificados de diversas cidades, vilarejos, rios, vales, bosques e montanhas durante o triste período fascista ainda são oficiais. Em sua maioria, inventados pelo fanático fascista Ettore Tolomei, cuja vontade de italianizar o Tirol meridional (não só a área de língua alemã) chegou aos extremos do ridículo. Há uma boa bibliografia sobre o assunto e este interessante site: http://www.tiroul.info/index.php/Hauptseite
    Atenciosamente,
    Everton Altmayer

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  3. Sou do Brasil . Meu bisavô paterno Jiacinto Campregher era do Tiro do Sul , veio para o Brasil em 1884 , fugindo da depressão local . Até a morte se auto denomenou austriaco. Abraço para todos os tiroleses .

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  4. Boa tarde, prof. Altmayer.

    Você julga que é lícito denominar a região de Trento por ‘Tirol Italiano’? Pelo que me parece a língua italiana (o toscano florentino) não era falada na região até o princípio do séc. XX; a maioria em Trento falava algum dialeto entre o lombardo e a língua veneta. Provavelmente houve um período em que toda a região falava a língua ladina-dolomítica.

    Meu bisavô mesmo, originário do Trentino, era falante do Ladino.

    Um abraço

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    1. Boa tarde, Tom!

      Você tem razão em seus argumentos linguísticos; porém, ao longo da história (ao menos antes do Risorgimento), todos os habitantes da Itália (na época, denominação puramente geográfica, como “Escandinávia”, por exemplo) falavam seus próprios dialetos, e ainda assim eram considerados “falantes de italiano”. O topônimo “Tirol Italiano” é historicamente correto e era utilizado inclusive antes da unificação da Itália (e da língua italiana).

      Abraços,
      Misael Dalbosco

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